Por ordem dos todos poderosos Trey Parker e Matt Stone, além, claro, da produtora, devemos considerar os outrora episódios especiais Especial da Pandemia, Especial de Vacinação, Pós-Covid e A Volta da Covid, ou talvez apenas os dois primeiros, segundo algumas fontes, inclusive o próprio Paramount+, como sendo a integralidade da 24ª temporada de South Park, de forma que a 25ª pudesse vir em 2022, efetivamente o 25º ano da incrivelmente longeva série animada cujo primeiro e agora histórico episódio da sonda anal em Cartman foi ao ar nos EUA exatamente no dia 13 de agosto de 1997. E, com isso, os seis episódios da nova e comemorativa temporada – a segunda menor em quantidade de episódios na história da série – foi ao ar entre fevereiro e março de 2022.
E, como alguém que adorava a série em seu começo, tendo-a acompanhado por algumas de suas primeiras temporadas, mas que, por diversas razões, a largou depois de um tempo, só retornando em razão dos especiais acima que, no agregado, não foram muito bons, minha curiosidade primordial era saber se, ao retornar dos problemas causados pela pandemia, a dupla criativa, agora com um inacreditável, mas merecido contrato de 900 milhões de dólares no bolso que inclui a produção de mais cinco temporadas (até a 30ª) e nada menos do que 14 telefilmes, conseguiria entregar episódios de qualidade. Estava bastante cético e até apreensivo, para dizer a verdade, mas isso durou apenas até o momento em que, em Pajama Day, o diretor politicamente correto da escola de South Park cancela o “dia do pijama” para a turma de Stan, Kyle, Cartman e Kenny, como punição por eles não prestarem atenção na “aula” de Mr. Garrison, somente para, ato contínuo, ser chamado de nazista e fascista.
Quando o xingamento começa, para indignação do diretor, o primeiro episódio engrena nessa específica e mais do que devida abordagem da polarização absoluta de posições e da banalidade das classificações extremas como chamar alguém de nazista unicamente porque proibiu crianças de usar pijamas no dia do pijama. E o triste é notar que as pessoas em nosso mundo real fora de South Park sequer reparam na gravidade que é usar esse tipo de adjetivação a torto e a direito como se estivessem chamando seus desafetos de nada mais do que “chatos, bobos e feios”, o que automaticamente retira a força dele.
Mas é o segundo episódio – The Big Fix – que realmente mostra que Parker e Stone não perderam mesmo a capacidade de lidar de forma polêmica com assuntos do momento ao lidarem com a inclusividade e o racismo chutando o proverbial pau da barraca ao revelar, para a surpresa de todos os espectadores, que o genialmente batizado Token, o único afrodescendente da escola da cidade, na verdade chama-se Tolkien, em homenagem ao grande escritor britânico. E o melhor é que a narrativa enquadra os 24 anos anteriores de South Park como uma incompreensão nossa sobre o nome, sendo que nós, espectadores, somos representados por Stan, o único de lá que não sabia disso (até Cartman tinha pleno conhecimento disso, só não sabia escrever corretamente o nome). E é torturando psicologicamente o jovem Stan que Parker trabalha o racismo estrutural que a maior de nós não percebe e, pior, não quer perceber, além de descer a lenha no uso das causas de inclusividade para ganhos de marketing, outra praga complicada de lidar.
Em termos de risadas por minuto, porém, o episódio vencedor da temporada é o terceiro, City People, em que South Park é invadida por pessoas da cidade grande procurando uma vida idílica em cidades menores, mas, ironicamente, trazendo todos os seus vícios consumistas de onde vieram e, claro, exigindo que eles sejam repetidos em seu destino. Há muito o que desempacotar aqui, começando pela hilária forma como os visitantes falam, basicamente cacarejos formados por produtos e atividades da moda de gente endinheirada, como “pilates”, “La Croix” (uma água carbonada americana de grande sucesso), “água mineral em garrafa de metal”, “cortado” (uma forma de se preparar café), “MacBook”, e assim por diante, passando pela atividade do corretor de imóveis, que é esculhambada até dizer chega (corretores de imóveis, por favor me perdoem, mas eu ri demais disso) em uma febre que leva a uma concorrência feroz na cidade e chegando ao personagem Tuong Lu Kim, dono do restaurante City Wok que diz tudo sobre os recém-chegados quando, em seu sotaque carregado, inadvertidamente pronuncia city people como shitty people (não sei como tem gente que insiste em assistir South Park dublado, pois entre isso e Token/Tolkien, muita coisa importante se perde na tradução).
Ranking dos episódios
6º Lugar: Help, My Teenager Hates Me!
5º Lugar: Back to the Cold War
4º Lugar: Pajama Day
3º Lugar: Credigree Weed St. Patrick’s Day Special
2º Lugar: City People
1º Lugar: The Big Fix
Apesar de menos inspirado do que talvez pudesse ser, Back to the Cold War segue a tradição da série em lidar com assuntos correntíssimos no momento em que eles ocorrem, já que ele foi lançado nada menos do que uma semana após o começo da (atual) invasão da Ucrânia pela Rússia. Um feito sem dúvida impressionante, que “reduz” todo o conflito a uma bem bolada visão nostálgica da Guerra Fria dos anos 80 por Mr. Mackey, que passa a ver conspiração comunista em todo o canto com uma bela piscadela à Jogos de Guerra e que deságua em uma competição de hipismo protagonizada por Butters e seu cavalo Melancolia que só sabe defecar e transar. Enquanto a linha narrativa que faz um uso perverso do sentimento de nostalgia funciona muito bem, a de Butters não tem carga humorística para se sustentar além das “cavalices” de sua montaria que logo se tornam repetitivas. Mas, claro, há todo o mérito de este episódio ter sido a primeira obra de ficção a lidar diretamente com as “putinices” de um certo sujeito que, claro, sente nostalgia pela antiga União Soviética.
Help, My Teenager Hates Me! é, talvez, o mais fraco de todos os seis episódios da temporada, pois ele depende demais de duas piadas que andam de mãos dadas. De um lado, vemos a crítica feroz à mania armamentista americana com as crianças desesperadas para “brincar” com Airsoft, marca de armas realistas de brinquedo que é febre nos EUA e, de outro, o contraste entre elas e os adolescentes com que elas são pareadas para poderem participar dos “jogos de guerras”, adolescentes esses que se mostram completamente insuportáveis em sua incapacidade de fazer qualquer coisa útil na vida. Há, claro, muito veneno respingando do roteiro, mas o efeito passa rápido demais e o que vem em seguida, mesmo considerando os meros 22 minutos de duração regulamentar, repetições temáticas que não se seguram muito bem.
Finalmente, Credigree Weed St. Patrick’s Day Special é, como o titulo deixa claro, um episódio “especial” em comemoração – em “esculhambação” seria mais correto – ao dia de São Patrício, data que serve de desculpa para muita bebedeira verde especialmente na Costa Leste americana. Assim como em The Big Fix, os assuntos centrais são delicados – agressão sexual e apropriação cultural – e, assim como em The Big Fix, o resultado é próximo do genial. Para abordar o primeiro tema, Parker usa Butters, a única pessoa da cidade que tenta comemorar de verdade o feriado, “beliscando”, como é tradição, qualquer um que não esteja usando alguma cor verde no vestuário, o que o leva a ser acusado de agredir sexualmente uma colega de escola depois de tocá-la (benignamente) sem seu consentimento. O que o roteiro faz, como South Park sempre fez, é usar uma situação extrema para deixar evidente o ridículo das duas pontas interpretativas, uma que acha que qualquer coisa é assédio e a outra que acha que nada é assédio. E o melhor é que podemos muito facilmente transferir o que vemos no episódio para qualquer outra festa, seja o Carnaval, seja uma reunião de amigos.
O outro assunto – apropriação cultural – tem como gatilho as “maconhas” especiais do dia de São Patrício oferecidas por Randy e também por seu novo concorrente e vizinho Steve Black, pai de Tolkien. Enraivecido por Steve também criar uma maconha especial para o dia, Randy o acusa de apropriar-se da “cultura branca” no “último dia em que os brancos podem comemorar sua cultura”. Eu não sei como o roteiro poderia ser mais didático na crítica em relação àqueles que realmente acreditam no que Randy diz, mas isso não tira a graça e a inquietude incômoda (mas bem-vinda) que a abordagem traz ao episódio, em outra demonstração de que South Park é uma voz sã em meio à tantas bobagens que ouvimos e lemos por aí, voz essa, porém, que exige um mínimo senso crítico e interpretativo para funcionar, claro.
Apesar de encurtada, a 25ª temporada de South Park é, depois de um longo intervalo pandêmico, um retorno à forma, uma espécie de aperitivo que Trey Parker e Matt Stone nos oferecem em preparação aos pratos principais que virão compassadamente ao longo da próxima meia década. Vida (ainda mais) longa a South Park!
South Park – 25ª Temporada (EUA, 02 de fevereiro a 16 de março de 2022 – 07 de abril de 2022, no Brasil)
Criação: Trey Parker, Matt Stone
Direção: Trey Parker
Roteiro: Trey Parker
Elenco (vozes originais): Trey Parker, Matt Stone, Mona Marshall, April Stewart, Vernon Chatman, Adrien Beard
Duração: 132 min. (seis episódios)