Muitos dos filmes orientais dirigidos por mulheres que chegam aos espectadores ocidentais através dos festivais de cinema possuem como núcleo central os costumes islâmicos se chocando com as suas conquistas individuais. Entre eles, está o egípcio Souad, que surge na Mostra de São Paulo 2021 e pega essa particularidade cultural, mas mistura ao bolo um novo ingrediente, desta vez um fenômeno global: a tecnologia e as redes sociais. Portanto, o que se vê é um filme especificamente regional, que carrega todas as nuances da cultura islâmica, mas também há muitos elementos de um drama adolescente universal que poderia atingir uma jovem de qualquer lugar do mundo.
Por isso, a grande particularidade do filme está no modo como sua diretora Ayten Amin olha para a inserção da tecnologia dentro da sociedade islâmica e na vida de seus jovens, fugindo de posicionamentos extremados e buscando compreender um pouco desse fenômeno descontrolado, tanto para o bem quanto para o mal. Se no primeiro plano que vemos a protagonista Souad ela está de costas para a câmera, mas enxergamos seu rosto através da câmera do celular, é porque não resta dúvidas que esta é uma narrativa muito mais sobre as imagens construídas nas redes sociais do que vice-versa.
Por um lado, a tecnologia em Souad é sim um meio que possibilita uma certa liberdade e fuga dos costumes para aquelas jovens meninas, ainda que em um espaço virtual. Afinal, o que já é banalizado para um público ocidental pode significar um grande avanço dentro daquela cultura. Tirar selfies, usar maquiagem para um book de fotos, gravar um tik tok dançando, adicionar um homem no Facebook e flertar com ele, fazer uma chamada de voz sensual etc.
Tudo isso é uma grande novidade para aquelas meninas. No entanto, ainda que o texto não as trate como vítimas, pois reconhece que aquelas meninas querem sim se sentir desejadas por homens e exibir seus corpos (como todo jovem de todo lugar do mundo), os acontecimentos narrativos levam a um grande sinal de “alerta”. E se a internet for apenas mais uma prisão que se camufla de liberdade? E se ela for apenas mais um meio que uma sociedade patriarcal, tal como a religiosa, subverte para ser uma ferramenta de poder sobre as mulheres? O que há do outro lado da tela: falsas promessas, mentiras, jogos psicológicos? Basta voltar para um dos momentos do filme em que Souad se mostra extremamente nervosa por Ahmed possuir fotos íntimas suas e pede para ele apagá-las, mas ela não confia nele. Trata-se claramente de mais um tipo de controle masculino, tão danoso quanto qualquer moralismo religioso.
Permeando entre um olhar deslumbrado e ao mesmo tempo receoso desse mundo (ou seja, um olhar jovem), Amin posiciona sua câmera com muita intimidade dentro desse microcosmo extremamente feminino e rodeado de telas das protagonistas de Souad. Deste modo, é seguindo uma corrente naturalista de cinema, com proximidade e mobilidade da câmera, que vemos todas as emoções das personagens do filme. A mesma câmera que registra uma reza de perto é a mesma que registra um momento de descoberta sexual íntimo ou que filma uma conversa descontraída entre uma roda de amigas quase como se estivesse dentro dela.
Neste sentido, é como se Amin não tomasse posicionamentos morais com sua mise-en-scène, observando tanto a tradição e o moderno, a sedução e o perigo, com a mesma distância, pois seu interesse é justamente observar conflito geracional caótico e cultural no qual se insere sua protagonista. Se a tecnologia em Souad vai se mostrando como perigosa, não é por isso, por exemplo, que a diretora não se permite filmar com sensibilidade e delicadeza um momento no qual a jovem usa ela a seu favor, que é quando ela tem sua chamada telefônica erótica. Em um filme que se passa dentro de um contexto islâmico no qual as mulheres devem se casar virgens, filmar uma cena “virtual” de sexo, que acontece no imaginário e no extracampo, é quase como um ato de contrabando, que assimila tanto as possibilidades dos meios tecnológicos como respeita a cultura local.
No entanto, por uma outra perspectiva, sua câmera também é um tanto quanto sufocante, onipresente em todos os seus momentos íntimos de Souad, quase que como uma intrusa dentro de sua vida, o que também reflete neste mundo cibernético de exposição que Souad vive. Ora, é justamente no único momento que a câmera volta o olhar para outra personagem, abandonando-a por alguns segundos, que ela finalmente toma uma atitude chocante que jamais seria feita se estivesse observada. Trata-se de um momento abrupto que vira o filme de cabeça para baixo. Se Souad já vivia entre a tradição e o moderno, sua irmã mais nova, Rabab, passa a olhar o mundo de maneira ainda mais confusa e perdida.
Na segunda metade de Souad os rumos mudam de maneira inesperada, uma vez que o virtual passa a ser confrontado com o real de maneira inesperada. Ahmed, que só existia no extracampo, enquanto voz na chamada, enquanto um vídeo na tela do celular, enquanto influência psicológica e imagem idealizada na mente de Souad, se transforma em pessoa real. Mais uma vez, a diretora Ayten Amin foge de traçar retratos caricatos, evitando fazer de Ahmed uma figura maniqueísta, mas é claro que aquele homem que vai sendo exibido frontalmente é bem diferente do que Souad e Rabab achavam que ele era.
De mesmo modo, existe também um frescor nos passeios que ele realiza com Rabab, porque a mudança de cenário da pequena cidade natal na qual se passa o filme para Alexandria não é apenas espacial, mas cultural, uma vez que a metrópole parece sofrer menos influência da religião. No fim, dando continuidade à toda construção ambígua dos meios tecnológicos que o filme havia construído aqui, Souad acaba invertendo a sua proposição inicial: se a protagonista não existe mais enquanto presença física, agora ela está eternizada enquanto uma música gravada que pode ser escutada no celular, repetidamente. Prisão ou finalmente uma liberdade de todos os impedimentos físicos que ela vivia dentro de sua cultura?
Souad (Idem, 2021) — Alemanha, Egito, Tunísia
Direção: Ayten Amin
Roteiro: Ayten Amin, Mahmoud Ezzat
Elenco: Bassant Ahmed, Basmala Elghaiesh, Hussein Ghanem, Hager Mahmoud, Sarah Shedid, Carol Ackad
Duração: 96 mins.