Parece-me que o ano de 2020 fora dedicado, e inspirado, a trabalhar por dentro da mente de personagens decadentes, cujo estado de demência se tornava o tema central de uma discussão ampla não só no que diz respeito ao assunto, mas sobretudo quanto à cinematografia empregada para representar esses sujeitos deslocados. Estou falando do estranhíssimo Capone (Josh Trank, 2020) e deste que escrevo a revisão: Sonhos de Uma Vida (Sally Potter, 2020). É relevante destacar que dois filmes de temática fora da curva foram lançados no mesmo ano, mas é chocante notar que, embora sejam projetos ambiciosos, nenhum deles consegue ser um grande filme, cuja excelência e destaque sejam suas marcas.
Acompanhamos apenas um dia na vida de um homem e sua filha, Leo (Javier Bardem) e Molly (Elle Fanning). Num período que cobre do amanhecer até a madrugada, compartilhamos de uma jornada um tanto difícil no cotidiano de um sujeito decadente, que parece ter perdido o senso da realidade. Sua filha, Molly, precisa levá-lo ao médico, depois ao dentista, depois ir ao mercado, mas todos esses compromissos, junto dele, acabam se tornando uma verdadeira odisseia – mas nenhum pouco divertida. Leo, ao perder a razão, não consegue mais se situar no mundo real, mas apenas dentro de si, num mundo imaginário que só existe devido à perda da sanidade e à chegada de uma espécie de loucura.
Observa-se que o filme tem um duplo enfoque: numa linha bastante tênue, ele caminha entre dar feição às fantasias e aos desejos não-realizados de Leo, fazendo com que construa uma realidade paralela dentro da sua cabeça – mais ou menos como acontece no Sr. Ninguém (Jaco Van Dormael, 2009) -, mas, ao mesmo tempo, o longa tem forte caráter realista, apostando na figura da sua filha, Molly, como a personagem do mundo real, aquela que passa por todas as dificuldades que é cuidar de seu pai num estado muito precário de “desrazão“.
O que nós, o público, recebemos, logo de cara, é um enredo fragmentado numa estrutura não-linear em que, ao buscarmos respostas para compreensão do porque aquele personagem está naquela situação, facilmente nos perdemos nas indefinições da fábula. Poderia até dizer que é uma história meio “ulissiana” à lá James Joyce, mas forçaria a barra se tentasse qualquer comparação. Mas fato é que a cineasta tenta fazer uma montagem complexa para o seu filme, nos fazendo viajar por entre os mundos criados pelo seu personagem, ensaiando criar uma coesão inter-relacional entre as histórias ficcionais e a realidade decadente dele, mas não dá certo porque nada disso é funcional. Fica a pergunta: em que lugar ela queria chegar com isso? Não querendo ser cruel, o filme falha em poucos pontos, mas peca justamente em lugares essenciais para a trama.
Contudo, se há aspectos que merecem destaque, um deles é o ator Javier Bardem. Um homem extremamente talentoso em todos os filmes que ele já fez na vida, e que na grande maioria eu já havia aplaudido sem medo algum. Aqui me vi na situação de ter de reverenciá-lo novamente. Há tanta verdade, verossimilhança, natureza realista e entrega na sua atuação que tudo, absolutamente tudo, circunda ele: Javier Bardem é o grande motivo deste filme, sendo mesmo capaz de elevá-lo a um nível que, sem ele, provavelmente o longa não ocuparia. Suas emoções soam verdadeiras, multifacetadas, versáteis, entre outros pontos que evidenciam um compromisso no seu ofício. Aqui, ele faz quatro personagens distintos e passa de um ao outro com facilidade e naturalidade, convencendo em todos eles.
Elle Fanning… dispenso comentários. Ela consegue transmitir a angústia que é cuidar de uma pessoa adoecida mentalmente. Nos sentimos sufocados, desesperados, tristes, com raiva do mundo e piedosos ao vê-la atuar. Sua atuação faz o público ter empatia e se colocar imediatamente em seu lugar. Sem mascarar nada, ela o tempo inteiro está ali dizendo, verdadeiramente, que é tudo muito difícil.
Mas veja que nem tudo é mil maravilhas. Faltam muitas explicações. O filme carece de um maior cuidado nos detalhes, nas razões de ser, na explanação da situação do personagem. Me parece que os fatos ficam jogados e que só se aborda a superfície da questão, sem um aprofundamento real naquele que é o herói da história. O tempo cronológico reduzido não é desculpa para que não saibamos mais sobre esse sujeito, porque de duas, uma: ou lhe faltou talento ou quisera ficar na superfície. Aquela é uma falha das piores, esta última, até preferível.
Falta algo que nos conecte ao drama principal e essa falta é justamente culpa do desenvolvimento capenga do personagem. Tudo o que sabemos são alucinações suas. Da vida real e da sua situação, nada; e isso faz muita diferença para o enredo, não se engane. O longa-metragem aposta numa constante melancolia que surge da trama como efeito provocado pela condição patológica do Leo e me fica a impressão de que faltou pouco para que o roteiro apelasse para algo mais dramático, a fim de comover o público com afetos vazios, diálogos indiferentes e enredo fraco. Isto é, apelando para algo mais chocante a fim de encobrir a fragilidade do desenvolvimento da sua fábula.
Já chegando ao fim, vamos concluindo que essa é uma história bem sofrida do ponto de vista temático, dolorosa mesmo, porque move com ocorrências das quais ninguém está isento de atravessar e que, sendo algo possível, mexe com os nossos sentimentos. E também porque a demência está mais próxima do que longe de todos nós. É um drama-trágico na acepção clássica da palavra, porque suscita piedade. Contudo, nos aspectos cinematográficos que compõem a trama, deixa a desejar por um motivo muito básico, mas elementar dentro do enredo: o não desenvolvimento do seu personagem principal. Veja que se ele, Leo, é o centro de tudo, mesmo que a trama falhe só nisso, no seu desenvolvimento, isso acarreta, inevitavelmente, numa perda de 50%, ou mais, da capacidade do filme. E é aí o seu grande tropeço. Uma sina trágica para o destino da película.
Sonhos de Uma Vida (The Roads Not Taken, EUA, 2020)
Direção: Sally Potter
Roteiro: Sally Potter
Elenco: Javier Bardem, Elle Fanning, Salma Hayek, Laura Linney, Branka Katić, Milena Tscharntke, Dimitri Andreas, Gerard Cordero
Duração: 85 min.