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Crítica | Som da Liberdade

Messianismo pré-pago da Angel Studios.

por Luiz Santiago
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Em sua classificação da natureza do cinema, Marcel Martin, em A Linguagem Cinematográfica, versa sobre a fragilidade da mídia, do formato e exibição do produto fílmico; sobre a futilidade dessa arte que é, para todos os efeitos, uma técnica vulgar de reprodução da realidade; e sobre a facilidade com que ela logra manipular as massas através dos mais diversos gêneros, caprichos técnicos ou de encaminhamentos ideológicos. Desde que o cinema solidificou o sistema de estúdios e estrelas, na década de 1930, essa abordagem se intensificou e ganhou frutos em produções com diferentes objetivos, dos documentários conscientizadores aos dramas existencialistas e reflexivos; das comédias de espelho social, aos terrores que satirizam o modo de vida e produção de um povo; dos inúmeros escapismos, aos religiosos ou realistas que se propõem a denunciar uma mácula social e defender uma tese, como é o caso de Som da Liberdade, terceiro longa-metragem do diretor Alejandro Monteverde, que tanto em Bella (2006) quanto em Little Boy (2015), trabalhou com elenco infantil ou deu importante destaque para crianças na narrativa.

Produção independente, com investimento de produtores do México e dos Estados Unidos, Sound of Freedom nasceu em 2018, pelos esforços da Metanoia e da Santa Fe Filmes, tendo um acordo original de distribuição com uma subsidiária latina da Fox. Quando o estúdio foi comprado pela Disney, em 2019, o projeto acabou parando na geladeira, sendo posteriormente negociada a recompra dos direitos de distribuição pelos produtores, que acabaram encontrando abrigo na Angel Studios, a mesma casa da série The Chosen (2017), bastante conhecida por fazer financiamento coletivo a fim de financiar suas produções originais. Com roteiro do próprio Monteverde, ao lado de Rod Barr (em seu segundo trabalho no cinema), o longa é a dramatização de relatos pessoais de um ex-agente do governo dos EUA, Tim Ballard (vivido por Jim Caviezel, escolhido a dedo e sob insistência veemente do próprio agente), que embarca em uma missão para resgatar crianças de traficantes sexuais.

O tema da obra é absolutamente importante, pouco explorado em produções cinematográficas de grande alcance e abre as portas para discussões ampliadas a respeito de uma realidade infame, que se manifesta em esferas menores e cotidianas, com a pedofilia e os abusos sexuais dentro de templos religiosos — e para os quais as lideranças das igrejas e os políticos apoiadores dessas lideranças simplesmente fecham os olhos –; e vai até as esferas grandiosas, com sequestros de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual e outras práticas, sobre as quais não vemos investigações para rastrear o dinheiro das operações ou quem são as grandes figuras por trás desses atos. Em Som da Liberdade, o texto centraliza o horror do tráfico sexual nas asas da Operation Underground Railroad (OUR), uma ONG criada por Tim Ballard em 2013, com o objetivo de caçar os indivíduos que integram tal cadeia de crimes. O ponto de partida é o sequestro de Miguel (Lucás Ávila) e Rocío (Cristal Aparicio, minha interpretação favorita do elenco), e todo o desenvolvimento da obra será a luta de Tim para resgatar esses “filhos de Deus que não estão à venda“.

A estética noventista de Som da Liberdade, muito conhecida dos filmes independentes, vem acompanhada de ingredientes visuais e convenções narrativas básicas de uma individualização messiânica para um problema de ordem social, jurídica e estatal. Após o primeiro bloco, em Honduras, somos apresentados a uma figura masculina ideal, que vai se tornando irrealmente perfeita, em todas as áreas de sua vida. A direção cria uma dinâmica excessiva de closes e quadros que engrandecem a figura de Jim Caviezel (canastrão como sempre, com olhar perdido, tendo duas ou três cenas com emoções bem encenadas), tornando-o alguém que encabeça uma luta por justiça, num enredo que jamais sai da superfície. E não sai da superfície porque não está interessado em usar o poderoso tema em discussão para ir ao cerne da nojeira da pornografia infantil. Afinal, na raiz do problema está um outro tipo de pornografia, aquela “aceitável” em sociedade; está o tabu da educação sexual nas escolas; a regulamentação da internet; a ineficiência da segurança pública para todos (ou será que ninguém percebeu o recorte de classe que o filme faz?); a pobreza, a fome e a falta de informações que a maioria das pessoas têm sobre direitos básicos (leia-se: o mito do “todos são iguais perante a lei“) e o “pacto dos olhos fechados” para todo tipo de crime… desde que haja dinheiro envolvido.

Mas discutir verdadeiramente o abuso sexual de menores em escala internacional é muito complexo para uma obra ancorada na criação de um homem-mito vindo da “Terra da Liberdade”. Em vez disso, o texto se aceita como simplório e investe todas as fichas numa caçada frenética (e aqui devo dizer que, surpreendentemente, o cineasta sustenta as cenas de tensão e suspense, que são as únicas bem construídas do longa), glorificando um único homem e individualizando a fonte dos problemas ao tentar responder perguntas complexas com respostas simples. Diz-se que este é “um filme que a grande mídia não quer que você veja“. Bem, depois de tê-lo visto, numa sala com 26 pessoas, eu tenho certeza que a grande mídia não tem absolutamente nenhum motivo para impedir ninguém de ver Som da Liberdade. Isso porque se trata de um longa absolutamente comum, com um tipo de narrativa que normalmente agrada aos que gostam de conflitos resolvidos por um salvador de valores conservadores. Embora se venda como uma obra que discute, expõe e critica seriamente o problema que aborda — e no parágrafo acima eu expus, com detalhes, o porquê isso é mentira –, Som da Liberdade está mesmo focado em vender um entretenimento chamativo com endeusamento de protagonista. O restante… são amenidades que garantem a existência do paladino e de sua organização não governamental.

A montagem, aqui, se torna um problema sério a partir da segunda parte, na Colômbia. Para além dos problemas de relação e tratamento do “enviado por Deus para salvar suas crianças” e os colombianos, a maneira como o editor Brian Scofield trabalha não permite que a história ganhe bons elementos de sustentação, gerando uma rodada de ação progressiva que nada cria de novidade, nem mesmo uma preparação orgânica para o encontro da menina Rocío. Neste ponto da obra, imagem e do texto se fixam no clichê e no choque. Talvez o peso fosse menor se a música de Javier Navarrete não fosse utilizada de forma onipresente, como se quisesse fazer, de cada sequência, um clímax. Há cenas que possuem força por si só e que poderiam emocionar ou enraivecer ainda mais o espectador se a direção conseguisse encadeá-las com fluidez (ou seja, que fizesse sentido, passo a passo, dentro da atmosfera daquele momento, algo que a montagem aleatória não permite); ou se não houvesse uma trilha sonora querendo ditar as emoções do público, quase sempre saturando as cenas em que aparecem, tornando os blocos fílmicos uma espécie de chamado apocalíptico.

Não há polêmica em Som da Liberdade. O fato de ser um filme ruim falando de um tema socialmente relevante não muda nada, apenas tem a capacidade de colocar em pauta uma discussão que deveria acontecer na base da sociedade, em mídias de massa e com intensa força-tarefa dos Estados para caçar os criminosos responsáveis por atos tão vis. Mas aí fechamos o ciclo retomando a minha tese de que a intenção do filme é uma, e o que ele entrega, é outra coisa. O que se faz é contar a história de um homem, visto e representado com um grande herói cristão, capaz de resolver os problemas que o filme pincela despreocupadamente, com direção de fotografia embebida em todo tipo de filtro monocromático e uma história no eixo da ação-e-reação.

Sem focar nas verdadeiras causas do problema e sem apontar caminhos viáveis e socialmente bem construídos de uma mudança (algo que o diretor e todo o marketing da obra sugerem que o filme faz, quando, na verdade, centralizam a esperança num único “faz-tudo milagroso“), a mensagem de encerramento reforça a passividade da plateia, praticamente clamando para que se encontre um “novo herói local” que fará, sozinho, aquilo que as forças oficiais não fazem. Nada se questiona ou contextualiza. A saída é o endeusamento de um justiceiro conservador com cara de mártir e encarnação da perfeição. Assim, o elo perdido entre a máscara e a verdadeira face de Som da Liberdade se revela. Neste elo, vemos agir a “facilidade” da natureza do cinema, segundo Marcel Martin, referenciando Ilya Ehrenburg e Jacques Audiberti. Facilidade por “apresentar-se geralmente sob a capa do melodrama, do erotismo ou da violência“. Facilidade porque é, “nas mãos dos poderosos do dinheiro, instrumento de imbecilização“. Facilidade porque é fábrica de sonhos e padrões que despolitizam e desmobilizam, alienando um trabalho social/civilizacional nas mãos de um único indivíduo. E principalmente, porque se revela um “rio fugaz que desenrola quilômetros a rodo de ópio óptico“.

Som da Liberdade (Sound of Freedom) — EUA, México, 2023
Direção: Alejandro Monteverde
Roteiro: Rod Barr, Alejandro Monteverde
Elenco: Jim Caviezel, Bill Camp, Cristal Aparicio, Javier Godino, Lucás Ávila, Yessica Borroto Perryman, Manny Perez, Eduardo Verástegui, Samuel Livingston, Gustavo Sánchez Parra, Kris Avedisian, José Zúñiga, Carlos Gutiérrez, Hector Lucumi, Mauricio Cujar, Gary Basaraba, Gerardo Taracena, Scott Haze, Valerie Domínguez, Mira Sorvino, Kurt Fuller, María Fernanda Marín
Duração: 131 min.

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