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Crítica | Soldado Estrangeiro

por Fernando JG
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Acompanhar três tempos distintos de uma mesma narrativa é o que propõe o documentário Soldado Estrangeiro (2019), de José Joffily (Quem Matou Pixote?) e Pedro Rossi (Caminho de Volta). Com a atmosfera intimista e uma montagem fragmentada, trabalho brilhante da Jordana Berg, a dupla direção oferece ao grande público uma emocionante viagem através da vida de três homens que decidem se alistar fora do país, cujo começo de tudo aponta para uma mesma vontade: de ser e de estar nas fileiras do exército. Bruno, Mário e Felipe são os personagens dessa história, que conta os diferentes motivos de suas decisões. Do sonho de uma vida melhor ao deslumbramento com a promessa de uma carreira militar consolidada, o filme acompanha as distintas perspectivas sobre três diferentes momentos de se estar no serviço militar, e guarda um terceiro ato para uma leitura sintomática e melancólica das fraturas reais da guerra, que se torna um trauma por quem por ela passa. Na medida em que o longa caminha na exposição das histórias, cada personagem é introduzido por uma epígrafe, retirada de passagens do livro Johnny Vai à Guerra, de Dalton Trumbo, que age como um catalisador e uma síntese introdutória das narrativas que serão apresentadas.  

“Não vai, Joe. Fuja!

Eles vão te matar, você sabe disso.

Eu não vou te ver de novo nunca mais.” 

“Por que você quer servir à Legião Estrangeira?”. Pergunta o recrutador. 

São com essas duas entrada que a gente conhece a história do Bruno. Morador do subúrbio do Rio de Janeiro e rejeitado pelo recrutamento do Brasil, ele tenta uma vaga na Legião Estrangeira Francesa – um segmento do serviço militar que se diferencia por aceitar estrangeiros -, assim como tantos outros que percebemos estarem nessa epopeia de testes. A história de Bruno marca, definitivamente, um começo. Na tentativa de oferecer um futuro melhor para a família, sobretudo à mãe e à filha, ele tenta ser aceito e já tem em mente seu propósito: “1000 euros eu mando pra cá, pra minha mãe, já dá pra ela ficar tranquila. Já me ajudou muito com a minha filha”. É nesse sentido que Bruno parte para a Europa. 

Com os pés no chão e sabendo de onde veio, o protagonista dessa primeira história apresenta as apreensões do alistamento. Em um clima de tensão, não sabemos se Bruno será, ou não, aprovado. Logo no início, ele tem o primeiro teste: as perguntas. Sem falar francês, e visivelmente nervoso, a angústia de um sonho possível de dar errado toma conta da ambientação cênica. Em seguida, é necessário que se faça o teste físico: uma calistenia de barra fixa, que consiste em se pendurar numa bastão, que está acima da cabeça, e treinar braço e ombro com o peso do corpo. É um exercício pesado e exige força e prática. Bruno precisa fazer 10 sequências, e não se sai tão bem. É agoniante ver o corpo dele sucumbindo e as forças indo embora, quase não conseguindo aguentar seu próprio peso. 

Durante o primeiro fragmento, acompanhamos o início de uma trajetória. Nestes primeiros momentos,  o trabalho de câmera  tem uma função essencial e se ajusta para captar todos os momentos possíveis, desde os preparativos em casa, passando pelo aeroporto, na viagem aérea, até a chegada na França. Os enfoques no rosto, de perfil, expressam uma ansiedade característica de um momento importante para Bruno. Ao mesmo tempo em que acompanhamos esse início, no pano de fundo, constantemente, a direção não deixa de pensar na violência armada. A todo instante, a TV, que está ligada no jornal, reverbera casos de violência e bala perdida, construindo sutilmente a unidade estilística antibélica do filme. E não à toa, a direção introduz, em algumas cenas monótonas em que o foco não está na guerra, flashbacks de momentos de batalha, com barulhos ensurdecedores de metralhadoras, para não nos deixar esquecer sobre o que se trata o filme. Apesar disso, Bruno tem a promessa de um futuro e de um destino. Esse futuro é costurado no segundo ato, com a segunda história. 

“Alguém lhe deu um tapinha no ombro e disse:

– Venha comigo, Joe. Você vai para a guerra

E você foi.”

Talvez o ponto nevrálgico da narrativa, por fazer a ponte,  a história de Mário, um jovem deslumbrado com o exército, é pensada para ocupar esse segundo momento. É a partir da história dele que acontece o desenvolvimento do enredo. Se Bruno era o início, Mário é o meio. É quem vai nos apresentar as armas, a atuação no serviço militar, e é por ele que a gente assiste o curso das intervenções das forças armadas. Em Israel, o seu trabalho é sustentado por um engajamento atuante na Cisjordânia e ao redor da Faixa de Gaza. O mais jovem de todos, talvez o mais inocente e ingênuo, ele representa os sonhos de uma juventude quanto ao serviço militar.

“E por qual tipo de liberdade eles estavam lutando, afinal, Joe?” 

Felipe, o terceiro e o mais danificado deles, aparece como um contraponto de toda a narrativa, e desconstrói a promessa estabelecida nos dois primeiros atos. Esse terceiro momento é de desconstrução, como um castelo de areia que desmancha com a chegada da maré.  

Felipe é um veterano de guerra nos Estados Unidos. Viajou com 17 anos para a América do Norte, fez faculdade, se alistou e se tornou um militar. Agora, passado tanto tempo, Felipe tenta adquirir seus direitos de veterano, e luta na justiça para que tenha o mínimo de dignidade, mas percebe que será uma nova batalha lutar contra o governo norte-americano, mesmo depois de tantos anos de serviços prestados. Ele foi deixado de lado, como outros veteranos. 

Atuou como atirador da marinha em missões no Afeganistão, onde adquiriu seus traumas. Um campo de guerra, como ele mesmo define a região. As memórias dos tempos de batalha são as piores possíveis, e é sofrido assistir ele lembrar que uma criança de 7 anos perfurou sua perna com uma faca. A violência está menos em ele ser perfurado pela faca, que pela construção cultural de um povo imerso sob a guerra há décadas, onde até as crianças agem de modo característico. Em retaliação, o pai da menina foi levado e morto. Os relatos de Felipe são todos muito dolorosos, e muito crus. É um homem mergulhado num niilismo e numa desesperança melancólica específica de um pós-guerra, que é difícil de assistir sem se emocionar com os relatos. Até por isso, o fragmento que conta a história de Felipe é o mais comovente de todos, envolvendo um drama que mexe com quem está do outro lado da tela. 

Felipe é o sintoma. É o resultado de uma sucessão de ações que resultaram no que ele é hoje. Viciado em analgésico, com o sangue radioativo e com diversas lesões, é frustrante ver ele dizendo: “Não tenho sonho; Não tenho pesadelo. Acho que eu perdi uma parte de mim”. Logo em seguida, Felipe é diagnosticado com estresse pós-traumático, e então a gente entende o peso de tudo isso. 

O fato de não sonhar – que na verdade é o não se lembrar do sonho –  significa,  numa esfera mais profunda da clínica psicanalítica, que seu inconsciente trabalha de modo a encobrir memórias traumáticas. Não que não exista sonho, nem pesadelo, mas sua mente age como um mecanismo de defesa, como explica Freud em seu Lembranças Encobridoras. Trazendo esses aspectos como resultado da guerra, o longa acerta em cheio ao promover a história de Felipe para desmanchar todo o idealismo e fazer a assinatura do caráter antibélico do filme. 

Felipe é Joe, do romance Johnny Vai à Guerra, um homem visivelmente machucado e deprimido. No romance, Joe, que perdeu seus movimentos devido à guerra, insiste na ideia de morrer. Felipe, por sua vez, dá sinais melancólicos, mas não aponta para uma morte evidente. 

Assim, se Bruno era o início; Mario, o meio; Felipe é, certamente, o fim. Tanto o fim estrutural na montagem do filme, quanto o fim enquanto o destino de um soldado em guerra. Ainda que as histórias sejam fragmentadas e autônomas, existe uma coesão na montagem, com início, meio e fim – mas não deixam de ser narrativas independentes em seus relatos pessoais. De fato, os aspectos técnicos que a dupla direção plantou conseguiu impressionar com uma estrutura que une o fragmentado, e atinge seu pico no ato de encerramento, que amarra o argumento.

Todos eles terão o mesmo destino? É difícil pensar. Mas é sempre uma possibilidade. 

Do momento em que foi finalizado o filme, Bruno foi aceito na Legião Estrangeira e partiu para o Mali; Mário continuou com suas atuações em Gaza e na Cisjordânia; e Felipe, o veterano, move um processo contra as forças armadas norte-americanas em busca de seus direitos. 

Soldado Estrangeiro (Brasil,  2019)
Direção: José Joffily, Pedro Rossi
Roteiro: José Joffily, Pedro Rossi
Elenco:  Bruno Silva, Felipe Nascimento, Mário Wasser
Duração: 90 min.

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