Ninguém está livre de, a partir de uma determinada idade, começar a reclamar dos novos tempos e a olhar com franca nostalgia tudo aquilo que se viveu no passado; à medida que se aplica doses cada vez maiores de despeito à maioria das grandes novidades do momento. Nem a tecnologia escapa, dependendo da situação. E foi pensando nesse hábito praticamente padrão da humanidade que Karel Čapek imaginou como teria sido uma conversa entre um homem velho e uma mulher velha na Pré-História. Quais seriam as reclamações desses indivíduos da Idade da Pedra? Que comparações eles fariam com o passado? Que tipo de novidade os deixavam impacientes e desgostosos com o andamento da vida, segundo eles, em “plena decadência“?
Essas perguntas são respondidas aqui com um humor preciso e conceitualmente real. Aqui no site mesmo a gente tem um exemplo hilário de como essa base de reclamação, de lamentos e xingamentos a todas as novidades se aplicam a um público contemporâneo. No meu artigo Já Reclamou do Novo ThunderCats Hoje? (aí eu também dou a minha contribuição para o que seriam as “reclamações paleolíticas“) eu brinco com todo o chororô que marmanjos sensíveis derramaram ao saberem da recriação do desenho; e podem observar que nos comentários a união entre lágrimas, ranho e baba criaram uma espécie de inhaca memorial-temporal da qual é difícil sair sem rir e até sentir um pouco de dó de determinados saudosistas. E mesmo este sendo este um exemplo um tanto extremo, a situação é clara e prova que se aplica às mais diferentes áreas. Em suma, envelhecer dá ao indivíduo um sentido extra. O sentido de reclamar de tudo.
E a coisa não para por aí. O tema já foi discutido através de diversos pontos de vista. Temos inclusive abordagens mais sérias, dentro da Filosofia, História e Sociologia, que traçam diferenças e semelhanças entre pensamentos, caindo em diferentes atitudes de gerações diante de um determinado problema. Livros sócio-filosóficos com pitadas de Teologia como A Abolição do Homem, de C. S. Lewis ou O Que Há de Errado Com o Mundo, de G. K. Chesterton são exemplos interessantes dessa visão mais séria sobre olhar para o passado e o traçado de uma linha comparativa em relação ao presente, chegando a conclusões pouco animadoras no geral.
Mas essa esfera séria é apenas uma das muitas esferas em que nós, humanos que envelhecemos, nos sentimos no maior direito de reclamar. De teorizar sobre como as novas gerações estão decaindo. De investigar e falar sobre aquilo que no passado funcionava e sobre o desprezo que a contemporaneidade tem em relação a esse conhecimento. Čapek aborda esse exato mesmo problema em Sobre a Decadência dos Tempos, fazendo-o com uma sagacidade ímpar. Ele começa com reclamações justas, interessantes, compreensíveis e até bem lógicas para qualquer um. Num comparativo contemporâneo, temos os já citados tratados e reflexões em variadas áreas do conhecimento a respeito do tema. Mas o autor não para por aí. Ele avança para aquilo que abarca a maioria das reclamações sociais e ideológicas: o exagero absurdo, um saudosismo inconsequente que não percebe que certos atos do passado não devem ser mantidos e sim extintos.
A grande crítica do conto está no critério generalizador que compõe esse tipo de conversa. Partindo do princípio que a maioria de nós tem muito mais dificuldade de se adaptar às novidades à medida em que envelhece, é de se esperar que as reclamações, as frases de pesar e os momentos de memórias do passado vão aparecer mais dia menos dia. E sim, em muitos casos essas lembranças são mesmo melhores num sentido ético-moral para a sociedade, não apenas para o indivíduo saudosista. Mas aí é que mora o perigo. Muitos acham que tudo aquilo que funcionava “no seu tempo” deve funcionar no momento presente tal e qual ele se lembra. Todas as atitudes, todo o comportamento social, toda a forma de expressão, o uso e significado de palavras, o próprio contrato social… tudo deve estar intocável, lembrando ao nostálgico indivíduo os seus tempos de infância, adolescência, juventude e primeira fase adulta. Porque “aqueles sim eram bons tempos!“. Só que nem sempre essas memórias realmente representam “bons tempos“, não é mesmo?
O que o velho e a velha pré-históricos desse conto se esquecem é que muitas coisas das quais eles sentem saudade faziam parte de um estágio cruel da sociedade. A evolução comportamental das novas gerações trouxe novos valores e essa realmente parece ser a tônica dos novos tempos. Por outro lado, certos conhecimentos que são simplesmente desprezados pelos jovens fazem com que o leitor dê razão a esses dois rabugentos junto à fogueira. Sentir saudade do passado é inevitável. Sentir um certo horror aos “novos rumos” da sociedade, também. Mas é preciso ter o mínimo de inteligência e maturidade para entender que certos arranjos sociais com os quais nos acostumamos ao longo da vida definitivamente não eram os melhores, e que logo logo eles serão destruídos para, em seu lugar, algo diferente se erguer.
O que isso significa? Bem, a resposta depende do nível de otimismo, rabugice, simancol e nível de humanidade somado ao número de neurônios ativos de cada indivíduo. Uma coisa é certa: nem sempre as mudanças significam essa tão temida, tão antiga e tão a nossa cara “decadência dos tempos“. Às vezes é só uma melhoria desafiadora mesmo.
Sobre a Decadência dos Tempos (O Úpadku Doby) — República Tcheca, 24 de dezembro de 1931
Autor: Karel Čapek
Publicação original: Lidové Noviny
Coletado em: Kniha Apokryfů
No Brasil: Histórias Apócrifas (Editora 34 — 3ª Edição, 2013)
Tradução: Aleksandar Jovanovic
9 páginas