Logo depois de ter lançado Cidadão Kane, Orson Welles deu ao mundo um outro excelente filme, porém desprovido da mesma liberdade criativa da qual conquistou sua magnum opus. Não que Soberba seja um trabalho conservador ou limitado artisticamente ao que se vê em tela — o aspecto visual, a direção e o tratamento temático e dado aos personagens acentuam o contrário —, o problema está justamente em torno daquilo que não se vê: um corte de uma hora imposto pelo estúdio RKO. É possível ter uma vaga impressão do dano causado por esse corte em meio a alguns diálogos e situações um pouco incompreensíveis — o choro da tia Fanny ao ser alvo de uma brincadeira é um deles — e passagens que soam meio deslocadas, mas também pode-se dizer que o filme muito se beneficiou com o seu ritmo dinâmico, em que a sagacidade da história é elevada ao mesmo tempo que ela conta com um tom obscuro.
A primeira parte do longa é composta por um prólogo que irá preparar o terreno para o restante da trama. É mostrado o triângulo amoroso que termina no casamento de Isabel com seu namorado, cuja mãe desta afirma que seus filhos serão mimados. Como diz a narração de Welles: a matriarca erra na quantidade — sua filha teve apenas George —, mas acerta na postura de Isabel e George, em que este é, de fato, completamente mimado. E é aí que está o principal ponto sobre a persona do garoto: ser um indivíduo de visão restrita e fechada para si mesmo, incapaz de compreender e se importar tanto com as pessoas ao seu redor quanto com o mundo lá fora. George abraça uma concepção monolítica da vida, completamente moldada em um padrão específico que não permite nenhum tipo de mudança.
Como já dito anteriormente, Soberba mantém uma junção de sagacidade com uma abordagem obscura, e essa síntese vem acompanhada com o acréscimo de mais um elemento, que é um toque fabuloso sobre o filme. Devido ao fato de ser ambientado na virada do século XIX para o XX, o longa abre margem tanto para um retrato aristocrático quanto para uma visão romântica de mundo. Essa dupla tendência possibilita um lado meio que mais inocente, primitivo e, às vezes, leve à obra. O tom cômico em torno das relações sociais durante a primeira parte, o retrato travesso da infância de George, cenas como a da serenata realizada também no início do filme; todas essas passagens atestam uma camada que é a grande responsável pelo clima diferenciado de Soberba, que poderia facilmente cair numa condução excessivamente séria, mas que acaba entregando uma atmosfera de graciosidade ao lado de seu aspecto pessimista.
George, o protagonista do filme, parece que não cresceu. Sua personalidade é marcada por um misto de infantilidade e maldade, o que acaba descambando também numa conduta com cara de um adolescente idealista. George demonstra ser “contra a modernidade” e, em relação ao seu futuro, ele nada quer com a vida. Apesar de já ter saído da faculdade, ele simplesmente não deseja trabalhar, tendo em mente, no máximo, uma organização beneficente. Sua estabilidade financeira já está garantida, existe nele toda uma aversão às novas tecnologias e ele ainda reprova o relacionamento amoroso de sua mãe por puro preconceito moral e vergonha em meio a alta sociedade. É o retrato perfeito de uma elite arcaica que estava se mostrando ultrapassada já naquela época. Uma classe parasitária distante do modelo burguês da sociedade industrial que sempre buscava pela eficiência, inovação e produtividade.
A fotografia e a decupagem do filme chegam a atingir o mesmo nível de excelência que a de Cidadão Kane. O trabalho de fotografia, apesar de não ter sido realizado por Gregg Toland, que trabalhou no próprio Cidadão Kane, remete perfeitamente a este mesmo filme, compartilhando também do jogo de luzes e sombras e profundidade de foco. Este desempenho no contraste entre luzes atinge um patamar deslumbrante, dominando boa parte da metragem do longa e transitando nas mais variadas gradações e tipos: as sombras oscilando entre faces e corpos completos; dando foco nos personagens ou nos cenários; em espaços internos ou externos; apenas de relance ou com presença total; se alterando ou permanecendo do mesmo jeito. Toda essa arte de Stanley Cortez, claramente ligada ao expressionismo, acaba fazendo da presença dos personagens algo mais vívido, realçando seus sentimentos no momento corrente.
Já o trabalho de Welles na decupagem capricha no posicionamento dos personagens em planos conjuntos de intensa beleza. Dos momentos de destaque estão alguns instantes em que a câmera se posiciona de maneira diagonal em enquadramentos abertos dentro de espaços internos e externos. A montagem de Robert Wise — este, sim, que também participou de Cidadão Kane —, perdeu sua autenticidade nos cortes impostos pelo estúdio; sendo, como já dito, responsável pelo dinamismo proporcionado e a leveza que parte da obra possui. Porém, para além da ação da RKO, Wise leva o mérito de ter criado uma excelente sequência de montagem paralela: a que mostra um carro sendo ajustado em consonância com uma carruagem em movimento. Junto à trilha sonora — de uma sonoridade bem travessa —, a montagem apresenta perfeitamente o confronto entre a tradição do presente e a modernidade dos novos tempos que estavam por vir.
Da mesma forma que um filme como O Leopardo apresenta a passagem da decadente aristocracia para a ascendente burguesia, Soberba retrata um homem que se esforça para se manter preso à primeira em um outro período de transição. No entanto, pode-se dizer que na obra de Welles essas mudanças se mantêm restritas a um espectro individual, sendo George uma figura singular naquele meio e não representando o seu grupo por completo. Por isso mesmo que essa sua posição acaba sendo uma tendência filosófica e moral, um temor não da decadência de si próprio, mas do mundo como um todo. No final do longa, as cidades já foram devoradas por uma arquitetura moderna e os automóveis já estão em plena circulação; enquanto isso George se encontra caído, menos pelas alterações do mundo do que pela soberba de si próprio.
The Magnificent Ambersons (EUA, 1942)
Direção: Orson Welles
Roteiro: Orson Welles, Booth Tarkington (romance)
Elenco: Joseph Cotton, Dolores Costello, Anne Baxter, Tom Holt, Agnes Moorehead, Ray Collins, Erskine Sanford, Richard Bennett, Edwin August, Georgia Backus, Harry A. Bailey, Olive Ball, Jack Baxley, William Blees, Lyli Clement
Duração: 88 minutos.