Seres humanos são criaturas infinitamente complexas, mas essa imensidão é frequentemente subestimada, até mesmo as particulares. Acreditamos sempre estar no controle de nós mesmos, de nossos sentimentos, mas isso raramente é verdade. A contradição é parte integral da experiência humana. É nessa imensidão que Só a Mulher Peca busca se aprofundar, especialmente na de sua protagonista, Mae Doyle (Barbara Stanwyck), uma mulher às voltas com seus sentimentos em relação a dois homens.
A trama se passa em um vilarejo americano de pesca na Califórnia, de onde Mae havia saído a 10 anos atrás, mas agora retorna para tentar retomar sua vida, seu irmão, Joe (Keith Andes) não está muito feliz com o retorno, mas sua namorada, Peggy (Marilyn Monroe) se mostra muito animada com a presença de uma mulher com mais experiência do mundo. Nas idas e vindas da cidade, Mae conhece Jerry (Paul Douglas), um pescador bondoso e simples, que se apaixona por ela, e Earl (Robert Ryan), um amigo do pescador que é o oposto, um homem grosseiro e rude. Os dois se apaixonam por ela, por motivos diferentes: Earl reconhece um espírito inquieto, e Jerry a acha uma mulher fascinante. O último a pede em casamento, que de início é recusado, mas depois aceito, mesmo que não exista muito sentimento ali, Mae simplesmente espera que o papel de “boa esposa” surja com o passar do tempo. Mas o tempo passa, e o tédio da vida caseira se torna demais para aguentar, e o cafajeste de ontem, passa a ser uma porta para uma emoção que há muito Mae não sentia.
O diretor Fritz Lang se preocupa muito em criar um sentimento de comunidade nesse espaço, ambientado muito das cenas iniciais em espaços coletivos, como um bar, ou até mesmo destacando o trabalho dos pescadores, cujo os barcos sempre marcam presença nos planos abertos mostrando o local. Nesse meio, Lang também consegue costurar eficazmente a misoginia que marca as relações nesse local. Joe e Peggy são introduzidos no meio de uma discussão sobre bater em mulheres, algo que ele diz que faria sem problemas com Peggy, e até simulam uma luta no meio da rua, mas a relação dos dois fica marcada por essa violência, que se repete mais a frente, e que reflete uma disposição geral dos homens do longa para com as mulheres, já que Earl também possui comportamento extremamente misógino. Com isso, é fácil que Jerry se destaque nesse meio, o mais decente entre os ogros.
Mas não basta definir bem os homens se no foco de tudo é uma mulher, e mais uma vez, Lang aposta no contraste entre os personagens para deixá-los bem definidos. Peggy é jovem, inocente e, francamente, um tanto boba, o que só reforça a aura mais experiente de Mae, que por sua vez deixa a sua “queda” por uma paixão fulminante sem muito futuro ainda mais trágica, é uma mulher que deveria saber mais, mas cujo o espírito não consegue se segurar. Seus sentimentos inquietos encontram eco no mar revolto que ruge fora do seu espaço caseiro, enquanto Mae contempla as ondas, tentando dar conta do que sente.
Os cenários domésticos se tornam campos de batalha quando todas as emoções vem à tona, a câmera de Lang evidenciando sempre as expressões dos envolvidos em na cena. O olhar suspeito de Jerry, a expressão falsa de Earl, a dor de Mae. Nos momentos finais da trama, o diretor resgata as sombras do seu cinema noir, e o lar que antes era tranquilo, agora é marcado pela escuridão.
A trama de Só a Mulher Peca pode não ser algo comumente associado ao nome de Fritz Lang, já que seu nome é quase sinônimo de noir, com obras voltadas para o mundo da espionagem e afins. Mas esse drama pouco deixa a dever a esses outros trabalhos, conseguindo ser tão, ou até mais, tenso em certos pontos do que as diversas histórias envolvendo nazistas que compõem a carreira do diretor.
Só a Mulher Peca (Clash by Night) – EUA,1952
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Alfred Hayes, Clifford Odets (peça original)
Elenco: Barbara Stanwyck, Paul Douglas, Robert Ryan, Marylin Monroe, Keith Andes
Duração: 105 minutos