Depois do sucesso de Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, Guy Ritchie retornaria à cadeira de diretor com Snatch: Porcos e Diamantes, desfrutando de um orçamento mais avantajado, e aproveitando do seu crédito ganhado na estreia para divertir-se com mais liberdade nessa arte chamada Cinema. Apesar de amar a “falta de qualidade” visual no seu primeiro filme, resultado do efêmero budget, mas que casa perfeitamente com a ambientação underground e criminosa britânica, é bem claro o salto qualitativo do aspecto visual de Snatch, com enquadramentos aperfeiçoados, paleta de cores mais vivas e cenas fílmicas distantes do teor simplório de Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes. No entanto, é incrível como, a despeito do melhoramento técnico, ambos filmes sejam tão semelhantes na sua exteriorização da aparência como primeira característica da identidade única e intensamente estilizada de Ritchie.
Todavia, essa liberdade criativa do diretor resulta no exagero estilístico no uso de ângulos absurdos e na cinematografia esquisita do filme, lembrando vídeos musicais em um momento, com muita dramaticidade e lindos shots desconexos, e o aspecto sujo marginal noutro, perdendo um pouco daquela atmosfera conjunta da delinquência cômica do subgênero de comédia criminosa, abrindo espaço para uma experimentação descomedida, que não cria uma unidade estilística própria ao longo da obra, causando a estranheza pela estranheza. Essa não é uma questão incessante na película, até porque eu adoro essa atitude do diretor no ímpeto de criar algo distinto e se divertir nas diferentes execuções visuais e editoriais, mas Ritchie perde a mão na construção ambiente da sua segunda obra, sustentando um tom visualmente bagunçado e sobreabundante de edição repentina e desagregada. E esse impulso deveras enamorado com sua própria identidade cinematográfica acaba sendo levado para a narrativa.
A trama, assim como em Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, é composta por vários núcleos que aos poucos convergem um com o outro até o clímax, mas existem duas linhas gerais: vários grupos em busca do diamante roubado e outro núcleo de personagens emaranhados no problemático universo de lutas de boxe clandestinas sob o comando do gângster Brick (Alan Ford) que deixa seus porcos devorarem os cadáveres de seus inimigos, daí a ótima tradução brasileira do título da fita: Porcos e Diamantes. E essa foi a minha sensação com a obra: ver dois filmes dentro de um, e não apenas isso, os próprios núcleos dessas narrativas principais funcionam tematicamente sozinhos. Ora, mas essa não é a ideia de filmes com essa proposta, como o próprio Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes ou então Pulp Fiction? A resposta é sim, contudo, Snatch peca na construção da forma com o tema, criando histórias contidas que funcionam melhor sozinhas e não como uma unidade geral completa. Logo, diferentemente de seu primeiro filme, no qual o roteiro episódico funciona em prol da temática geral, Snatch acaba passando uma ideia fragmentada tanto visualmente quanto no teor narrativo de seus núcleos, divergindo em estilo, tom e linguagem, quebrando a identidade fílmica do Ritchie em certos aspectos do contexto.
Ainda que a mise en scène esteja fraturada, Snatch: Porcos e Diamantes atingiu status de clássico da Sétima Arte, e mesmo após diversas revisitações continua me conquistando por um motivo: divertimento. Esse é, sem sombra de dúvidas, o filme mais divertido do Guy Ritchie no campo de comédia histérica mesmo, de dar gargalhadas e passar toda a duração do longa – com exceção de uma ou outra cena mais dramática – com um sorriso estampado de orelha a orelha, obsessivamente acompanhando essa jornada maluca dos personagens. E são eles mesmos que te conquistam: o cigano Mickey (Brad Pitt), com sua dialética estranha e personalidade lunática; a dinâmica dos azarados Turco (Jason Statham) e Tommy (Stephen Graham); o já citado antagonista canastrão Brick; o egocêntrico e viciado em apostas Franky Quatro-Dedos (Benicio Del Toro); o sempre violentamente divertido Vinnie Jones, assumindo novamente sua persona no papel de Tony Dente de Bala; o imortal e carniceiro Boris, o Punhal (Rade Sherbedgia); a dupla mais estúpida da história do crime, Sol (Lennie James) e Vinny (Robbie Green); e mais uma lista gigante de personagens secundários fenomenais. Esse elemento já existia em Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, mas por funcionar mais como uma unidade divertida, muitos deles tem pouco tempo de tela, funcionando como esquetes dentro da narrativa maior. Já em Snatch, cada personagem ganha sua narrativa auto contida com muito cuidado, que fragmenta sim a linguagem e danifica a trama como um todo, só que esse espaço dado ao elenco genial torna cada um deles inesquecivelmente hilários.
O roteiro humorístico afiadíssimo, a caracterização única, os nomes ridículos, o diálogo profano e inaudível, o uso de temas musicais para diferentes integrantes, além, claro, das magníficas atuações, edificam e até mesmo te fazem esquecer de como a obra como um todo é um tanto estranha na sua forma somada a temática, pois funciona espetacularmente nas diferentes tramas exageradas. Muitas pessoas rotulam Snatch: Porcos e Diamantes como “mais do mesmo” na filmografia de Ritchie, o que é, honestamente, um argumento ridículo, pois identidade própria não significa mesmice. A questão é que o diretor testou e abusou do seu estilo de tal forma que criou uma baguncinha no cerne estilístico e cinematograficamente linguístico da película, mas é uma baguncinha gostosa, divertida e eternamente clássica. Uma das melhores obras violentamente cômicas já feitas.
Snatch: Porcos e Diamantes (Snatch) — Reino Unido, EUA, 2000
Direção: Guy Ritchie
Roteiro: Guy Ritchie
Elenco: Jason Statham, Benicio del Toro, Dennis Farina, Jason Flemyng, Vinnie Jones, Brad Pitt, Rade Sherbedgia, Lennie James, Alan Ford, Mike Reid, Robbie Gee, Ewen Bremmer, Ade, William Beck, Andy Beckwith, Jason Buckham, Mickey Cantwell, Nicola Collins, Teena Collins, Sorcha Cusack, Adam Fogerty, Sam Douglas, Mickey Dee, Goldie
Duração: 102 min.