Se os três “Johns-exércitos-de-um-homem-só” mais famosos do audiovisual – Rambo, Matrix e Wick, para ninguém ter dúvida – se fundissem em um personagem só e ainda recebessem infusões generosas de colegas como James Braddock, Robert McCall, Beatrix Kiddo e Bryan Mills, eles talvez, fazendo esforço, teriam chance de chegar no nível do silencioso, barbudo e (i)mortal ex-comando finlandês Aatami Korpi (Jorma Tommila) que, tendo deixado a guerra de lado e se tornado garimpeiro, acaba sendo obrigado a trucidar nazistas que querem seu ouro em algum lugar perdido na Lapônia. Em seu terceiro longa-metragem, Jalmari Helander criou uma versão sanguinolenta, vingativa, primal e selvagem do herói real de seu país Simo Häyhä, apelidado de A Morte Branca, que matou algo como 500 soldados soviéticos durante a chamada Guerra do Inverno, quando a URSS invadiu a Finlândia no começo da Segunda Guerra Mundial.
Mas a inspiração em Häyhä, apesar de clara, é só o pano de fundo, uma desculpa para um longa que não tem a menor preocupação com a realidade e está muito mais no estilo daqueles protagonizados pelos personagens invencíveis e imortais que listei acima (e muitos outros, lógico) do que qualquer outra coisa. Aliás, diria até que Helander, apesar de inicialmente trafegar de leve por um lado mais pretensamente artístico, com belos planos gerais da paisagem desolada, mas linda do norte da Finlândia que refletem e ecoam a solidão auto imposta do personagem de Tommila, e que são inspirados pela filmografia de Sergio Leone (incluindo aí a trilha sonora de Juri Seppä e Tuomas Wäinölä, não demora a trilhar um caminho muito mais cru que seus pares que é ao mesmo tempo autoconsciente dos exageros que só se tornam mais absurdos na medida em que a fita progride e muito confortável com essa escolha que leva Sisu a ser um exemplar europeu moderno de um filme trash.
Se, com o devido estado de espírito, sempre é divertido ver uma máquina humana (ou nem tanto) de matar chacinando bandidos das maneiras mais originais e sanguinolentas possíveis, seja um cano atravessando o grande vilão ou uma katana tirando o escalpo de uma inimiga, dentre a infinidade de exemplos que poderia dar, há um inegável prazer especial quando esses bandidos são nazistas. Apesar de Sisu não ser nenhum Bastardos Inglórios – e nem quer ser, ou será que quer? -, ver nazistas sendo literalmente explodidos em um campo minado ou degolados no fundo de um lago (com direito ao ar deles ser sugado diretamente da traqueia pelo protagonista como Drácula faria com sangue) por um homem de cabelos e barba brancos no mais completo improviso não tem preço. E olha que o diretor e roteirista ainda faz questão de caracterizar os nazistas da pior maneira possível, ou seja, como se já não bastasse eles serem nazistas, eles ainda são explicitamente estupradores, sádicos, covardes, déspotas, traidores e canalhas, em uma espécie de convergência astral de tudo de negativo na humanidade.
Como os parágrafos acima provavelmente deixaram bem claro, Sisu não tem exatamente uma história, mas sim, apenas, uma premissa ou talvez nem isso. Tudo o que acontece ao longo da projeção, que é dividida em capítulos como um filme de Quentin Tarantino, é uma sucessão de sequências repletas de ultraviolência, sangue e tripas que competem entre si pelo “prêmio” de maior absurdo e maior necessidade de suspensão da descrença, sempre naquela esperada progressão geométrica de videogame. Se o espectador estiver, como disse, com a mentalidade correta para assistir Sisu, a diversão completamente descerebrada estará garantida. Obviamente, porém, que isso não blinda o filme de seu problemas que se confundem com suas mais evidente característica, ou seja, ele nada mais é do que uma desculpa rasa para Helander filmar as cenas mais ultrajantes possíveis e colocá-las em uma ordem minimamente lógica para arrancar risadas de espectadores que só querem esse tipo de diversão vazia.
Helander, apesar de até ter um razoável apuro estético quando realmente quer, ainda que ele não saiba muito bem utilizá-lo de maneira consistente, escreve um roteiro que não tem nenhuma nesga de mensagem como pelo menos o primeiro Rambo tinha, nenhuma tentativa de construção de mitologia como a franquia John Wick tenta, e sequer um protagonista que pareça humano como na trilogia Busca Implacável, o que, claro, não são pecados mortais, mas mostra um pouco de preguiça em pelo menos esforçar-se para oferecer mais do que o valor de face da obra. Faz parte do jogo, eu sei, e, como disse, a diversão estará garantida para quem só realmente quiser fast food com litragem alta de sangue, mas a grande arte em filmes realmente inesquecíveis da categoria do “só divertem” está em entregar subtextos que quem só enxerga a superfície – ou quem só quer enxergar a superfície – acaba absorvendo, mesmo que subliminarmente. Não é o caso de Sisu, obviamente, mas a pilha de corpos de nazistas de fazer inveja a todos os exércitos de um homem só do cinema que Aatami Korpi deixa em seu rastro pode compensar essa falta…
Sisu – Uma História de Determinação (Sisu – Finlândia/EUA, 2022)
Direção: Jalmari Helander
Roteiro: Jalmari Helander
Elenco: Jorma Tommila, Aksel Hennie, Jack Doolan, Mimosa Willamo, Onni Tommila, Tatu Sinisalo, Wilhelm Enckell, Arttu Kapulainen, Ilkka Koivula, Max Ovaska, Pekka Huotari, Severi Saarinen
Duração: 91 min.