Home Literatura Crítica | Alerta Vermelho (Diários de um Robô-Assassino #1), de Martha Wells

Crítica | Alerta Vermelho (Diários de um Robô-Assassino #1), de Martha Wells

Um ciborgue mais humano do que muito humano.

por Ritter Fan
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A americana Martha Wells vem escrevendo livros de fantasia e ficção científica desde 1993, a maioria criações próprias, mas também tie-ins de universos bem estabelecidos como Star Wars e Stargate. Em 2017, ela começou um projeto baseado não em romances completos, mas sim em novelas, obras de giram em torno de 150 e 200 páginas focadas em um ciborgue antissocial e viciado em séries de TV que se autodenomina Murderbot (ou Robô-Assassino por aqui), projeto esse batizado de Diários de um Robô-Assasssino que, diante do sucesso e do prestígio que recebeu com premiações logo na largada, no momento da publicação da presente crítica, já conta com cinco novelas, dois romances e três contos, com as quatro primeiras novelas formando uma história completa formado, por sua vez, por quatro arcos também completos.

Alerta Vermelho, é, de fato, um excelente começo para uma história muito interessante que se torna realmente especial em razão do ciborgue em questão que, há algum tempo, hackeou seu próprio sistema de controle de maneira a ter mais independência e poder assistir suas adoradas séries de TV (que ele chama genericamente de “mídias”), especialmente a fictícia A Ascensão e Queda da Lua Santuário, ainda que ele continue cumprindo sua função primordial que é a de ser uma Unidade de Segurança de uma empresa que oferece esses serviços a quem tem dinheiro para contratá-los, algo comum em explorações espaciais nesse universo em razão de exigências das seguradoras. Tecnicamente, Robô-Assassino é, portanto, uma unidade armada de inteligência artificial feita com partes humanas e tecnológicas que age essencialmente por conta própria, ainda que seguindo sua programação primária.

Quando a novela começa, em um futuro razoavelmente distante em que a humanidade explora diversos planetas em uma estrutura pesadamente corporativa, não governamental, ele está em um planeta remoto fazendo a segurança de uma equipe de cientistas humanos (um deles um humano com implantes cibernéticos) liderada pela Dra. Ayda Mensah. Tudo transcorre bem até que o grupo é atacado por uma monstruosa criatura nativa, com Robô-Assassino indo bem além de sua programação para salvar o grupo. Essa ação inicial abre espaço não só para uma hesitante aproximação entre ciborgue e humanos e, também, a descoberta de uma conspiração muito maior que envolve GrayCris, uma corporação dedicada a localizar e “minerar” artefatos alienígenas.

Mas esse pano de fundo que, como disse, é realmente interessante, ainda que bastante objetivo e, por diversas vezes, segue o clichê da “corporação malvada sem rosto que não se importa em matar para conseguir o que quer” não é o que realmente importa em Alerta Vermelho. O grande trunfo na manga de Martha Wells é mesmo seu Robô-Assassino, talvez uma das mais fascinantes inteligências artificiais da literatura por ele ser tão característica humano, inclusive e especialmente em todos os aspectos que ele mesmo desgosta nos humanos e que o faz ficar distante deles o máximo possível, daí seu mergulho em séries, novelas e filmes que ele baixa sem qualquer filtro em toda a oportunidade que encontra e assiste mesmo quando está em meio à ação. Esse foco no ciborgue fica ainda mais evidente com o uso de narrativa em primeira pessoa a partir do ponto de vista de Robô-Assassino que se chama dessa forma de maneira autodepreciativa em razão de um passado sombrio em que ele, por razão que não consegue se recordar, matou os humanos que deveria proteger em uma missão.

Robô-Assassino é um ser antissocial por excelência, alguém que está feliz em ser deixado sozinho com seus pensamentos e suas mídias, claro, em um canto escuro qualquer da base em um planeta ou em uma nave. Ele não quer contatos com mais ninguém, especialmente com humanos, pois ele desgosta profundamente não dos humanos em si, mas sim das reações e das emoções que ele inadvertidamente sente ao interagir com eles, algo que ele reputa vem de suas partes orgânicas que são órgãos e tecidos clonados de humanos já falecidos. Como estratégia para manter-se isolado mesmo quando precisa ficar próximo de humanos, ele faz questão de manter-se o tempo todo com sua armadura que cobre completamente seu rosto e, portanto, suas reações ao que ouve. Por outro lado, ele simplesmente não consegue escapar de sua diretiva primária que é salvar os humanos que foi contratado para proteger, mesmo considerando seu grau de independência em relação às ordens vindas da empresa que supostamente o controla (ele, por exemplo, tem a capacidade secreta de não instalar pacotes de atualização de software enviados por seus donos e assim por diante), algo que lembra muito a característica central de RoboCop, no clássico oitentista de Paul Verhoeven.

A pergunta que ele faz de tudo para evitar é: ele faz o que faz por “seus humanos” em razão de suas programação original ou porque ele realmente se importa com eles? Esse é ponto nodal existencial de Robô-Assassino e que é a discussão central de Alerta Vermelho, especialmente quando, em razão das circunstâncias que cercam o ataque inicial e o que ele descobre posteriormente no planeta, ele é basicamente obrigado a aproximar-se dos humanos que precisa proteger, aproximação essa que vai além de seu mero e frio dever e que é amplificado pela compreensão de sua situação pela inteligente Dra. Mensah, humana que o ciborgue passa, contra todos os seus “sentimentos” a admirar.

Sob diversos aspectos, Alerta Vermelho é uma bem sacada jornada de autodescoberta de um ciborgue. As emoções e sentimentos do protagonista ganham cada vez mais relevo na medida em que a novela progride, com Wells equilibrando muito bem os momentos contemplativos com as sequências de ação, em que Robô-Assassino controla drones, usa sua arma embutida no braço e, claro, é alvejado diversas vezes. Há de tudo, portanto, para quem gosta de ficção científica mais profunda e, ao mesmo tempo, mais repleta de ação insana, ainda que ninguém deva esperar profundidade à la Isaac Asimov aqui, até porque a autora espertamente – e, hoje em dia, quase que inevitavelmente – esmere-se em um verniz cinematográfico que torna sua novela material de fácil adaptação audiovisual (o que, aliás, ao que tudo indica, acontecerá em breve).

Robô-Assassino, no final das contas, é o ciborgue com quem muitos de nós, leitores, conseguiremos facilmente nos identificar por todas as características psicológicas que mencionei e isso o torna imediatamente atraente e relacionável. Alerta Vermelho faz muito bem a introdução desse excelente novo personagem da ficção científica e conta uma história rápida, completa e fechada que, claro, como quase todo material literário da atualidade, é facilmente expansível como já aconteceu com as novelas, romances e contos seguintes que abordam momentos tanto para a frente quanto para trás na vida do protagonista cibernético.

Alerta Vermelho (All Systems Red – EUA, 2017)
Autoria: Martha Wells
Editora original: Tor.com
Data original de publicação: 02 de maio de 2017
Editora no Brasil: Editora Aleph
Data de publicação no Brasil: 02 de julho de 2024
Tradução: Laura Pohl
Páginas: 160

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