É ao mesmo tempo revelador e trágico notar como a percepção social do sistema prisional é praticamente sempre sobre punição e não reabilitação, seja no imaginário coletivo, seja em seu reflexo na arte. Como diria o Capitão Nascimento, bandido bom é bandido morto. Apesar de simplista, não condeno o sentimento, nem obras que retratam essa realidade. Mas Sing Sing revela qual deveria ser a base do cárcere privado: transformação e inspiração; de injustiça o mundo tá cheio e afogado. Baseado em uma história verídica sobre um programa de reabilitação na prisão que dá nome ao filme, a produção nos apresenta um grupo de prisioneiros que encontram refúgio na arte, mais especificamente no teatro, como uma forma de encarar e externar suas próprias inseguranças, anseios, medos e especialmente fugir do contexto em que vivem.
O primeiro aspecto que chama a atenção na abordagem do cineasta/roteirista Greg Kwedar é a forma como seu filme não parece e não anda como outras obras de prisão. Entendemos, sim, o espaço em que os indivíduos se encontram, seja pelo cenário frio de concreto e pela direção sempre fechada, pelas reações faciais caídas quando os personagens falam sobre o ambiente e suas experiências, e pelo misto de desespero e de esperança sempre que a possibilidade de sair da prisão vem à tona na história. Mas onde há drama, também há delicadeza, humor e muita camaradagem, com a narrativa ganhando um corpo de clube de drama escolar dentro de uma cadeia, quase como se o teatro ficasse fora da realidade na prisão; longe da violência, da tensão, da crueldade e da inimizade. Quando estão no programa, os presos se chamam de amado, vestem fantasias, dançam e contam histórias impossíveis. Por mais que exista uma linha clara de melancolia, Kwedar entrega uma experiência quase elegante e simpática no meio da tristeza vaga do enredo, muito distante do que normalmente estamos acostumados com filmes de prisão, talvez porque exista uma inclinação narrativa sobre esperança.
Isso não significa, porém, que não temos faíscas na história. A essência do enredo jaz na relação entre John “Divine G” Whitfield (Colman Domingo), o fundador do programa e uma pessoa de muitos talentos artísticos, e Clarence “Divine Eye” Maclin (uma versão ficcionalizada interpretada pelo próprio Maclin), um preso violento e desconfiado que cria diversos atritos no grupo. A dinâmica relativamente tensa entre a dupla dita o tom das mensagens otimistas e os temas sociais do roteiro, com Maclin passando por um processo bonito de reabilitação através da arte e da amizade. Domingo entrega uma interpretação marcante como o extravagante, sensível e decente Divine G, que serve de mentor enquanto passa por seus próprios problemas – às vezes, a persona flamboyant do personagem quase destoa do restante do elenco, mas também o destaca. Já Maclin entrega um trabalho extremamente realista e eficiente em retratar uma antiga versão de si mesmo, seguindo o tom pragmático da obra.
Inclusive, o filme flerta muitas vezes com o estilo documental, não só pela estrutura da história, mas também pelo elenco composto quase integralmente de ex-presidiários, que também foram ex-alunos do programa da prisão Sing Sing, pela fotografia naturalista e pela composição de diversas cenas que parecem quase entrevistas ou sessões de terapia. Kwedar também traz elementos minimalistas que reforçam essa ideia, com muitos close-ups, foco em momentos simples e uma abordagem suave, quase despretensiosa às vezes. Talvez seja nessa abordagem que o filme perde um pouco de força, primeiro porque o ritmo quase documental consegue ser moroso em determinados blocos, e segundo porque a narrativa parece andar em círculos em alguns momentos e em outros soa um pouco superficial, como se não tivesse para onde ir além de martelar os mesmos tópicos. Por fim, o texto cai um pouco em batidas sentimentais e melosas em alguns pontos e diálogos da fita, principalmente na reta final da obra.
Ainda assim, o resultado final de Sing Sing, apesar de terno, não esquece de ser agridoce, especialmente em algumas cenas frustrantes de Divine G com o sistema e com a realidade do mundo. Mesmo tropeçando no ritmo e na sensação de vazio da narrativa em vários pontos da história, Greg Kwedar tece um filme de prisão que tem um olhar muito diferente do que estamos acostumados, “fugindo” dos impulsos de tensão e violência para construir um palco ou, melhor, os bastidores de um grupo de desesperados encontrando esperança. Que esse conto seja baseado em fatos reais é um adendo agradável para a experiência. Ironicamente, à medida que os prisioneiros se aventuram na diversão que é o mundo das artes, o escapismo vira mudança e redenção. Difícil não terminar o filme com um sorriso no rosto.
Sing Sing – EUA, 2024
Direção: Greg Kwedar
Roteiro: Clint Bentley, Greg Kwedar, Clarence Maclin, John “Divine G” Whitfield (baseado no livro Breakin’ the Mummy’s Code, de Brent Buell)
Elenco: Colman Domingo, Clarence Maclin, Sean San José, Paul Raci
Duração: 105 min