De maneira semelhante e no mesmo ano em que Andy Weir começaria a publicar Perdido em Marte, Hugh Howey investiu na auto-publicação do que viria a se tornar um romance pós-apocalíptico e, agora, uma série de TV pelo Apple TV+. Usando a plataforma Kindle Direct Publishing, Howey lançou o conto autocontido Wool (Lã, em tradução direta) que imaginava um mundo arruinado em futuro aparentemente distante em que os humanos sobreviventes vivem debaixo da terra em um gigantesco silo com 144 andares e em que toda a locomoção se dá por escadas. Com o sucesso, o que era uma historieta completa, ainda que sem qualquer resposta sobre o que acontece ao final, tornou-se a primeira parte de cinco que seriam publicadas até 2012 e, mais tarde, em formato de romance tradicional com o mesmo título do conto inicial (que se refere, metaforicamente, à venda que se retira dos olhos para que a pessoa passe a enxergar a verdade), mas que, no Brasil, foi batizado apenas de Silo, que é normalmente o nome pela qual a saga literária (hoje composta de três romances) é batizada.
Essa forma de publicação, mesmo com o trabalho de editorialização certamente ocorrido para criar coesão narrativa entre as diversas partes, continua sensível durante a leitura, pois o primeiro conto, que acaba com a morte do xerife Holston, seu protagonista (e não, isso não é spoiler, mas sim a premissa), serve apenas de tira-gosto, de trampolim para que aí sim Howey desenvolva de verdade suas ideias por meio da introdução de Juliette, uma eficiente engenheira que trabalha nos andares mais profundos do silo que, para a prefeita Jahns e seu delegado Marnes, é a candidata perfeita para tornar-se a nova xerife da cidade autossustentável. Nesse desenvolvimento narrativo que começa com uma literal jornada de dias escada abaixo por Jahns e Marnes, Howey espertamente apresenta ao leitor os detalhes da hierarquia e da mitologia desse universo autocontido que criou, dividindo as castas operacionais e de poder do local em três grandes grupos que poderiam ser classificados em “burocrático”, “controlador” e “prático” com o primeiro – do qual a prefeita e o delegado fazem parte – ficando no nível mais alto e, portanto, próximo da superfície do silo; o segundo, basicamente representado pelo todo-poderoso Departamento de Informática comandado pelo manipulador Bernard, ficando no meio e, finalmente, o terceiro, nas profundezas, povoado por técnicos e engenheiros que mantêm as mais variadas máquinas funcionando. Entre uma coisa e outra, há os demais locais reconhecíveis de uma infraestrutura de uma grande cidade, só que configurada para esse ambiente essencialmente tubular que são, pela distância e dificuldade de locomoção, isolados um do outro.
O que Howey faz muito bem nesse primeiro romance de sua saga literária é justamente atiçar a curiosidade do leitor com um início essencialmente críptico e, depois, desenvolver a mitologia do silo subterrâneo nesse mundo pós-apocalíptico em que todo mundo que ali vive só conhece essa realidade, sabendo pouco ou quase nada do que os levou – ou, melhor dizendo, levou seus antepassados – à essa situação. É fascinante como o autor consegue fazer seus comentários sobre a importância da comunicação para a criação da consciência de uma sociedade e como a falta dela – ou sua manipulação – facilita o controle de uma população inteira por meio de subterfúgios simples como a desinformação e a criação de narrativas que só existem justamente para manter o status quo. Para todos os efeitos, o significado do título em inglês caracteriza muito mais o que é Silo do que o nome de batismo por aqui, ainda que seja compreensível essa escolha, já que “Lã”, “Venda” ou algo nessa linha ficaria muito estranho.
Por outro lado, Howey investe no desenvolvimento da mitologia em detrimento do desenvolvimento de personagens, o que obviamente não é a melhor saída. Um autor com mais traquejo e experiência teria sido capaz de trabalhar simultaneamente as duas coisas, criando uma uniformidade maior ao conjunto de sua obra. Mas, para uma primeira incursão literária, o que ele faz é inegavelmente muito interessante e, em termos comparativos, resulta em um romance mais bem escrito do que a citada obra de Weir. No entanto, retornando a seus personagens, eles são, todos eles, recortes em cartolina. Enquanto isso é compreensível no caso de Holston, que conhecemos primeiro, já que a parte inicial, dedicada a ele, é claramente imaginada como algo hermético e misterioso e um aprofundamento do personagem poderia atrapalhar, o mesmo não é aplicável aos demais. Ainda que Jahns e Marnes ganhem bom destaque a partir da segunda parte, a grande verdade é que eles são personagens de uma nota só, o mesmo valendo para Bernard mais para a frente e, depois, para Lukas, que inicialmente tem participação acanhada.
Se pelo menos Juliette, como a efetiva protagonista, fosse brindada com o tipo de aprofundamento e desenvolvimento necessário, eu nem estaria reclamando disso aqui, mas a grande verdade é que ela não é muito diferente dos demais. A personagem é uma engenheira hábil e calada, com relação estremecida com o pai médico que não vê há anos e que, há algum tempo, contribuiu com uma investigação do xerife Holston, sendo essa a razão principal de ela ter ficado no radar da prefeita e do delegado para substituí-lo. De resto, ela não passa de uma heroína típica de histórias de ação em que seus atos são muito mais relevantes do que suas motivações e do que seus conflitos interiores. Mas volto a repetir: dentro de uma estrutura repleta de novidades que Hugh Howey constrói, por vezes pode parecer que desenvolver Juliette não é exatamente necessário, mas uma visão um pouco mais crítica revela que a personagem carece de camadas.
Mesmo assim, Silo progride bem até sua parte final que, apesar de ser repleta de ação, é, talvez, um pouco mais longa do que deveria ser, com algumas conveniências narrativas que cansam o leitor. No entanto, o final mesmo – que muitos até podem interpretar como anticlimático – revela-se de uma simplicidade que considero elegante e que encerra com qualidade um ciclo completo da narrativa sem que seja necessário que o autor recorra aos clichês de obras do gênero e sem trair sua premissa, ou seja, mantendo sua abordagem essencialmente autocontida naquilo que ele tão cuidadosamente constrói nas partes anteriores. Um feito raro nos dias atuais em que o que vale mais são os fogos de artifício e os exageros e isso certamente tem grande valor. Se Howey consegue manter essa pegada nos dois livros posteriores (porque é que tudo tem que ser no mínimo uma trilogia hoje em dia, hein?), descobrirei em breve.
Silo (A Saga Silo #1) (Wool, EUA – 2011/2012 e 2020)
Autor: Hugh Howey
Editoras originais: Kindle Direct Publishing (auto publicação em formato de novelas entre 2011 e 2012), Simon & Schuster (distribuição original em formato de romance), Mariner Books (hardcover em 2020), William Morrow Paperbacks (paperback em 2020)
Datas originais de publicação: entre 2011 e 2012 no formato de novelas auto publicadas e 2012 em formato de romance
Editora no Brasil: Editora Intrínseca
Data de publicação no Brasil: 24 de janeiro de 2019
Tradução: Edmundo Barreiros
Páginas: 594