- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas da temporada anterior e de nosso material sobre a franquia.
Sei que provavelmente poucos leram a trilogia literária em que Silo, série do Apple TV+ comandada por Graham Yost (de Justified), foi baseada, pelo que não a abordarei aqui a não ser para dizer que a segunda temporada da série confirma aquilo que eu já havia percebido na anterior, ou seja, que estamos diante de uma adaptação audiovisual que realmente sabe o significado da palavra “adaptação” e que pega o que os elementos bons dos livros têm a oferecer e os melhora substancialmente, descartando o que não presta e fazendo daquilo que é mal trabalhado no papel algo que efetivamente funciona na telinha. É, sem dúvida, algo raro de se ver por aí, mas que, por duas vezes seguidas, a misteriosa ficção científica pós-apocalíptica de Yost, já renovada para mais duas temporadas, acerta em cheio.
Ok, menti um pouco que não iria comentar os livros, mas prometo que paro com a próxima afirmação que, obviamente, só fará sentido para quem leu: Hugh Howey, autor dos romances, parece ter um ânimo enorme para escrever centenas e centenas de páginas, mas nenhuma habilidade para desenvolver seus personagens, e Graham Yost, que usou duas temporadas para cobrir apenas o primeiro livro, é bem sucedido justamente nesse aspecto. A Juliette Nichols do livro é rasa como o proverbial pires, mas, na série, ela, mesmo mantendo sua rispidez e visão prática de mundo, consegue mostrar muito com muito pouco, mérito em grande parte de uma mais do que inspirada Rebecca Ferguson como a milagrosa engenheira mecânica transformada em curiosa xerife e, depois, em ameaça ao silo em que vive ao ponto de ser condenada à morte no final da temporada inaugural. E o mesmo vale para quase todos os demais personagens que povoam esse fascinante e extremamente realista mundo subterrâneo em que 10 mil humanos vivem na mais completa ignorância do como e do porquê eles estarem lá.
E a segunda temporada parte exatamente do momento em que Nichols, para estupefação de todos que a observam pela câmera que aponta para um planeta desolado do lado de fora, ultrapassa o ponto em que os outros condenados normalmente morrem e desaparece da visão, tornando-se automaticamente uma lenda e um símbolo que promete desestabilizar o tecido dessa frágil civilização encrustada em um gigantesco buraco no chão, para desespero de Bernard Holland (Tim Robbins), prefeito temporário, e de seu segundo em comando Robert Sims (Common). No entanto, o real valor dessa segunda temporada da série é assumir riscos que, sob diversos aspectos, subvertem completamente as expectativas de uma obra audiovisual dessa natureza.
E o que Silo faz de tão diferente é algo ao mesmo tempo óbvio e ousado. Yost, que começou a série como um whodunnit que objetivava apresentar o espectador a esse universo tubular e ao (des)equilíbrio de poder lá dentro, com a necessidade de se manter segredo sobre tudo imperando sobre a vida das pessoas, cria duas narrativas paralelas que, de um lado, separa a protagonista de toda a estrutura a que estávamos familiarizados e, de certa forma, a coloca em posição coadjuvante, e, de outro, dá imenso destaque justamente às manobras de Bernard para manter aquilo que ele julga ser a ordem do silo e toda a força oposta representada por “rebeldes” do departamento de Mecânica de onde Nichols é originária. É como se os roteiristas, confiantes de que tudo estava muito bem estabelecido na mente dos espectadores, tivessem “destacado” Juliette na história principal e a colocado em um outro pedaço desse mundo segmentado, de forma a abrir espaço para toda uma revolução indireta e inadvertidamente causada por ela mesma, revolução essa que ameaça a vida de todos ali.
Para minha surpresa, essa quebra de expectativa funcionou muito bem, pois, em primeiro lugar, ganhamos a continuidade fluida e direta da história que já conhecíamos, com personagens como Knox (Shane McRae), chefe da Mecânica, e Shirley Campbell (Remmie Milner), melhor amiga de Juliette, além da reclusa agorafóbica Martha Walker (Harriet Walter) e do hesitante e doente novo xerife Paul Billings (Chinaza Uche), além de diversos outros, inclusive, mas por um período muito curto, tenso e trágico, a juíza Mary Meadows (Tanya Moodie), sendo elevados ao status de peças-chave dessa narrativa, ao lado dos dois vilões citados mais acima, claro. E, em paralelo, ganhamos um silo completamente “novo” para explorar, que é o primeiro com que Juliette se depara em sua exploração do lado de fora e que tem uma entrada com milhares de corpos em decomposição como macabras boas vindas para a sobrevivente. Lá dentro, tudo é terra arrasada, quase que uma versão de um universo paralelo e assombrado do mundo em que vivia, quase sem luz, com metade dos andares alagados e com apenas um sobrevivente, um homem que se autodenomina Solo (Steve Zahn em um papel que trafega muito bem entre inocência e insanidade) e que vive dentro de um cofre que ele se recusa a abrir.
O contraste entre os silos é a grande jogada da produção, com Yost criando paralelos muito interessantes entre o crescente e perigoso caos do Silo 18 e o completo e assustador vazio do Silo 17, entre a profusão de personagens em maquinações mil e a interação de apenas dois tentando construir uma literal e metafórica ponte para ligá-los. Com isso, até mesmo o passo narrativo é diferente, com tudo envolvendo Juliette e Solo parecendo andar substancialmente mais devagar do que vemos acontecer no Silo 18, o que leva a uma variedade constante em que, aos poucos, as peças de um quebra-cabeças único, mas em dois espaços diferentes, vão sendo satisfatoriamente montadas, criando uma boa “conversa” entre silos, mas sem que haja qualquer comunicação entre eles. Para todos os efeitos, o Silo 17 é o que o Silo 18 pode vir a ser se Juliette não retornar para avisá-los e nós aprendemos isso juntamente com a protagonista logo no começo da temporada, fazendo com que a ação aparentemente mais lenta no silo moribundo fique desesperadora quando percebemos o avanço dos acontecimentos no silo de onde veio Juliette.
Meu único problema com a cadência narrativa é relacionada com a Operação Salvaguarda que é o resultado de toda uma complexa investigação feita por Lukas Kyle (Avi Nash) por ordem de Bernard e que parece uma sidequest quase aleatória que acompanhamos com interesse, mas sempre com dúvidas sobre o objetivo de tudo aquilo. Mas enquanto essa linha narrativa pelo menos tem construção no Silo 18, no Silo 17 ela é um fiapo – um literal pedaço de papel – perdido no último episódio a ponto de parecer ter sido algo que os roteiristas se esqueceram de escrever em capítulos anteriores e tiveram que inventar algo nos 45 minutos do segundo tempo. Entendo a necessidade de se manter o segredo – afinal, tudo é altamente secreto nos silos – e compreendo que talvez esse assunto não pudesse ser alvo de duas narrativas constantemente paralelas, mas tenho para mim que, no que toca Juliette e Solo, o assunto pareceu conveniência preguiçosa que eu coço minha cabeça em descrença considerando o quão cuidadoso é o trabalho de Yost.
Mas saindo dos aspectos narrativos, vale mencionar, como introito ao segundo ponto de ousadia da segunda temporada, que a direção de arte continua magnífica, agora com o trabalho dobrado de criar dois cenários gêmeos, mas só que um deles completamente destruído. É gratificante ver, mais uma vez, como o uso de cenários reais, construídos de verdade e não no computador (mesmo que sejam amplificados pela discreta computação gráfica), empresta um espetacular caráter de espaço vivido à série, permitindo a mais completa imersão do espectador nos dois lados da história. E parte dessa imersão vem do tal segundo ponto que queria abordar, ou seja, a escolha da direção de fotografia em trabalhar com ainda menos luz do que a temporada anterior, sem abrir nenhum tipo de concessão, a não ser, claro, nos poucos momentos em que há tomadas exteriores ou que vemos os interiores dos cofres nos dois silos. Sei que muitos poderão achar que a série ficou escura demais, mas creio que isso seja essencial para que ela funcione de verdade. Precisamos comprar que estamos a centenas de anos no futuro em silos em graus diferentes de decomposição, com o melhor deles funcionando a trancos e barrancos, com luz mínima e o pior quase que completamente no breu.
Não é, portanto, uma série para ser assistida de qualquer jeito se for possível evitar e se a intenção for aproveitar cada segundo dela. O escuro é escuro sim, mas jamais aleatoriamente escuro. Muito ao contrário, trata-se de escuridão cuidadosamente construída por um soberbo trabalho de iluminação e captura de imagens, com a graduação de cores em pós-produção garantindo não só a perfeita identificação de cada silo apenas pela intensidade da falta de luz, digamos assim, como também uma sufocante e claustrofóbica visão desses mundos nas sombras a ponto de ser um real alívio quando alguma cena é apenas levemente mais clara. Mas uma coisa é certa: não dá para sentir isso vendo a série em uma TV desregulada e/ou em um ambiente claro demais, pelo que considero importante evitar mergulhar em Silo sem um mínimo de preparo “técnico” antes.
Com um final razoavelmente abrupto que engata quase que em uma cena pós crédito alongada em que a ação é rebobinada no tempo para uma Washington D.C. nos dias atuais (ou quase) em que vemos o congressista Daniel (Ashley Zukerman) conversando com a jornalista Helen (Jessica Henwick) sobre um ataque com bomba suja pelo Irã em Nova Orleans e que causa aquela sensação de “o que diabos está acontecendo?”, a série parece apontar para meu maior medo, que é uma temporada flashback como foi o livro do meio da trilogia de Hugh Howey. Mas tenho para mim que uma mudança completa de elenco, deixando Ferguson e companhia em banho maria até a quarta temporada, não me parece ser economicamente viável, e que, com isso, Yost continuará fazendo o que tem feito de melhor, ou seja, pinçar do material literário aquilo que tem valor e desenvolver de seu próprio jeito. Mas só o tempo dirá. Até aqui, ele só mostrou compreender muito bem o que é a arte de adaptar e é isso que espero ver também no terceiro e penúltimo ano da série.
Silo – 2ª Temporada (Silo – EUA, de 15 de novembro de 2024 a 17 de janeiro de 2025)
Desenvolvimento: Graham Yost (baseado em obra de Hugh Howey)
Direção: Michael Dinner, Aric Avelino, Amber Templemore-Finlayson
Roteiro: Graham Yost, Fred Golan, Cassie Pappas, Sal Calleros, Jenny DeArmitt-Stran, Jeffery Wang, Katherine DiSavino, Remi Aubuchon, Jessica Blaire, Aric Avelino
Elenco: Rebecca Ferguson, Common, Tim Robbins, Steve Zahn, Harriet Walter, Avi Nash, Rick Gomez, Chinaza Uche, Shane McRae, Remmie Milner, Alexandria Riley, Clare Perkins, Billy Postlethwaite, Matt Gomez Hidaka, Iain Glen, Tanya Moodie, Caitlin Zoz, Christian Ochoa, Georgina Sadler, Orlando Norman, Sara Hazemi, Lolita Chakrabarti, Ashley Zukerman, Jessica Henwick
Duração: 514 min. (10 episódios)