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Crítica | Side Quest – 1ª Temporada

Trabalho, quadrinhos, música e jogo.

por Ritter Fan
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Lançado em sua integralidade no mesmo dia em que o último episódio da quarta temporada de Mythic Quest foi ao ar, o spin-off Side Quest, que originalmente tinha o bem menos inspirado título Mere Mortals (Meros Mortais) e contava com oito episódios, é uma série em formato de antologia, agora com apenas quatro episódios, que se inspira nos excelentes episódios soltos e autocontidos da série mãe. O objetivo é justamente lidar com a vida de pessoas que são direta e indiretamente afetadas pelo videogame central da série principal, uma proposta esquisita, mas bem-vinda e, por incrível que pareça, muito bem executada, que vem em um momento em que Mythic Quest entregou sua mais fraca temporada, mostrando que ainda pode haver luz no final desse túnel.

Como é difícil avaliar uma temporada dessa natureza em uma crítica só, decidi lidar com cada episódio separadamente, em comentários curtos e com notas separadas. Vamos lá?

1X01
Som e Dança

O primeiro episódio da antologia é o único que conta com personagens retirados da série principal, mais precisamente o sempre estressado e explorado diretor de arte Phil Birch (Derek Waters) e o absurdamente egoísta Ian Grimm (Rob McElhenney), com o primeiro tentando tirar férias no Havaí com sua namorada Maude (Anna Konkle) e o segundo incessantemente ligando para ele para pedir novas artes para o lançamento iminente de Mythic Dance no Japão. A ótima premissa, portanto, é também tematicamente muito amarrada à série que tem como tema central as relações de trabalho em um ambiente corporativo, com Phil historicamente representando o funcionário de alto gabarito que, porém, é obrigado a viver exclusivamente para seu trabalho, sem receber qualquer tipo de reconhecimento, seja financeiro ou de outra natureza.

Com isso em mãos, a trinca de roteiristas composta por Ashly Burch, John Howell Harris e Katie McElhenney, também criadora desse spin-off, faz das comunicações cada vez mais invasivas de Ian uma cunha cravada no relacionamento de Phil com Maude, algo que é amplificado pela insegurança do primeiro em relação à namorada e à insatisfação da segunda com ela sempre sendo relegada à segundo plano em relação ao trabalho do parceiro. Waters, pela primeira vez em muito tempo tem espaço para desenvolver seu personagem e ele o faz muito bem, em uma sucessão enervante e desoladora de situações que colocam o ator em uma decadência visual já que Ian não tem nada que se aproxime do chamado “simancol”. Nessa linha, é muito interessante como o muro divisório entre comédia e drama passa a ruir até desparecer por completo, fazendo com que Phil passe a não mais suportar o peso da pressão e deixando que isso afete Maude que,  por seu turno, faz de tudo para mostrar que ele precisa traçar a fronteira entre trabalho e vida privada.

A situação do protagonista é crescentemente kafkiana e isso transparece na direção nervosa de Todd Biermann, que estabelece sequências que parecem inofensivas e idílicas somente para trazê-las abaixo com a inacreditável insistência de Ian para que Phil trabalhe mesmo de férias. O paraíso havaiano dá lugar ao inferno laboral, uma situação que é infelizmente muito comum também no mundo real, com funcionários que não podem dizer não e patrões que só querem ouvir sim mesmo quando às vezes ouvem não. Som e Dança leva tudo ao extremo, claro, mas pelo menos oferece um vislumbre esperançoso em seu final.

1X02
A Lista

Não sei se algum leitor já teve o prazer de frequentar uma loja que vende revistas em quadrinhos. Não falo nas antigas bancas de jornal ou livrarias que também vendem quadrinhos, mas sim, efetivamente, lojas especializadas em HQs, algo que é ainda incomum no Brasil, mas extremamente comum nos EUA. Faço essa indagação, pois eu já tive essa oportunidade no tempo em que morei por lá e todas as vezes que minha profissão (que não, não é crítico) me leva para lá e posso dizer de cadeira que esses locais são microcosmos muito particulares, muito específicos povoado por uma “tribo” diferente e variada que faz da compra de quadrinhos não algo semelhante a comprar uma camiseta em uma loja de roupas, mas sim uma verdadeira e prazerosa cerimônia. E é isso que A Lista celebra, localizando a ação em uma dessas lojas, só que de propriedade de uma mulher afrodescendente, o que cria mais uma camada relevante dentro desse microcosmo, mas conseguindo capturar à perfeição “o que são” esses lugares.

A relação de quadrinhos com Mythic Quest está no fato de, como acontece no mundo real, o videogame fictício da série ter expansões na forma de quadrinhos, com a mais recente edição, a primeira a contar com um protagonista preto e que a loja só recebe uma cópia, sendo cobiçada por quatro clientes diferentes, uma jovem mulher que não tem outra vida a não ser a relacionada a quadrinhos, um menino no começo da adolescência que está na “idade certa” para viver os quadrinhos, um jovem homem aparentemente bem de vida que frequenta a loja constantemente e um homem levemente mais velho que não só está ali para comprar a HQ para agradar seu enteado. Gravitando ao redor deles há, claro, a dona da loja, um senhor que fica o dia inteiro jogando um RPG de cartas com quem aparecer por lá e, finalmente, um homem mais velho (o único branco) que só visita a loja para ver e comprar hentai. A variedade dos personagens, a forma como o roteiro consegue criar tensão e até suspense ao redor de uma HQ e os diálogos espertos e genuínos desse mundo específico fazem do episódio uma delícia nerd daquelas de abrir um sorriso no rosto de quem conhece esse meio.

A Lista é nerdice quadrinística na veia que conta uma história aparentemente boba, mas que faz comentários sociais interessantes e bem encaixados, sem jamais parecerem forçados ou fora de lugar. Além disso, é muito interessante como, com ele, o universo de Mythic Quest é realmente expandido, indo além até mesmo do produto principal da empresa da série e entrando nos meandros da exploração de uma propriedade intelectual ao seu máximo. Hummm, deu vontade agora de passar uma tarde em uma dessas lojas de quadrinhos só respirando esse ar estranho, por vezes bizarro, mas sempre prazeroso para quem, claro, gosta dessas coisas.

1X03
Fuga

Distanciando-se ainda mais do óbvio, Fuga é um episódio exemplar, talvez no Top 3 de todos do universo de Mythic Quest, pois ele não só consegue abordar algo pouco usual, que é a trilha sonora de games sendo alvo de turnê mundial de uma orquestra sinfônica, como lida com a relação de músicos com a música, começando pelo dom de uma menina que, adulta, se torna uma violoncelista que consegue um cobiçado lugar na dita orquestra e seu caminho que a leva à felicidade, mas também obsessão, depressão e uma desconexão completa da música. O episódio funciona tão bem que ele pode ser assistido e aproveitado por qualquer pessoa, mesmo que nunca tenha ouvido falar em Mythic Quest (aliás, essa é uma marca positiva de todos os quatro episódios de Side Quest, vale dizer), lidando com uma temática universal que o torna imperdível.

Annamarie Kasper vive magistralmente bem Sylvie, a referida violoncelista que é escolhida pelo maestro Gustavo (Esai Morales) para fazer parte de sua equipe, com a turnê mundial então começando e ela entrando em uma espiral em busca da perfeição que a leva a justamente distanciar-se de sua paixão de infância, mostrando que a busca do inalcançável não é fácil e muito menos é para todo mundo, com um preço muito alto a ser pago psicológica, física e emocionalmente. Contando com uma direção cuidadosa de Todd Biermann que dá muito valor à atriz e, também, à materialização visual dessa conexão com a música de forma semelhante aos sabores multicoloridos experimentados pelo crítico gastronômico Anton Ego, em Ratatouille, o episódio tem conteúdo suficiente para ser até mesmo um longa-metragem, com roteiro de temática rica e abundante que, por incrível que pareça, é condensado em pouco mais de meia hora sem em momento algum parecer mais curto do que deveria ser, ao mesmo tempo em que deixa gosto de quero mais, nem que seja para ver Kasper em seu belo papel.

Confesso que, se eu havia ficado desapontado com a quarta temporada de Mythic Quest e embarquei em Side Quest com má vontade, com os dois primeiros episódios já me surpreendendo, Fuga acabou sendo a prova cabal que a série ainda tem muito o que oferecer se ela conseguir sair do confinamento temático que acabou se impondo. Não reclamaria nem um pouco se a linha narrativa deste episódio “solto” fosse incorporada à principal, ainda que, para isso, seja necessária uma completa reinvenção da série mãe, o que é melhor do que ela se manter como está, obviamente.

1X04
O Último Ataque

Se Fuga foi o episódio que mais se distanciou de Mythic Quest, O Último Ataque é de longe o que mais se aproxima, e isso mesmo comparando com a própria série principal. Afinal, o que vemos é, quase que exclusivamente, uma narrativa que se passa dentro do jogo, com uma guilda formada há quatro anos por avatares de cinco amigos do ensino médio e o irmão pequeno de um deles em uma missão conjunta que enfrenta problemas com o servidor da empresa, problemas esses que se refletem no relacionamento entre eles fora do jogo, mas que são discutidos dentro do jogo. É a primeira vez que vemos de verdade como Mythic Quest é como jogo e é também uma excelente maneira de se abordar amizades físicas que se desdobram em virtuais.

Cada personagem tem proeminente uma espécie de faceta arquetípica de gamers. Temos o líder que dita as regras, o jogador que se acha o melhor, a jogadora que entra em seu personagem completamente como uma atriz de método, uma criança que só fica zoando e não joga seriamente e assim por diante, com cada missão levando a vitórias virtuais, mas revelações no mundo real que vão testando os laços de amizade entre eles, laços esses que exigem tomadas de decisões difíceis e uma espécie de curso acelerado de amadurecimento. Claro que a estrutura do episódio exige que tudo aconteça de uma vez durante uma partida de jogo apenas, mesmo que demorada, o que retira um pouco a verossimilhança da narrativa, mas o objetivo do roteiro, aqui, foi muito claramente encapsular um momento específico na vida desses jovens que, claro, é um reflexo da realidade de muita gente da mesma idade.

O Último Ataque é uma mais do que apenas simpático mergulho no mundo dos games, só que sob o prisma dos jogadores, daqueles que efetivamente passam horas a fio em mundos virtuais lutando ao lado e contra avatares de amigos que, em alguns casos, só conhecem nesse ambiente, uma realidade irreal para muitos “velhos” como eu – apesar de ter jogado muitos games na vida, nunca joguei online e muito menos em grupo e nem pretendo -, mas que é o cotidiano de milhões de pessoas de todas as idades talvez ao ponto da insalubridade, mas essa é outra história e não o ponto do ótimo episódio sob análise. Quem sabe se Side Quest não retroalimenta Mythic Quest para que a série mãe volte ao frescor que mostrou ter ao longo principalmente de suas duas primeiras temporadas?

Side Quest – 1ª Temporada (Idem – EUA, 26 de março de 2025)
Criação:
Ashly Burch, John Howell Harris, Katie McElhenney
Direção: Todd Biermann (1X01 e 1X03), Maurice Marable (1X02), Will Speck e Josh Gordon (1X04)
Roteiro: Ashly Burch, John Howell Harris e Katie McElhenney (1X01, 1X03 e 1X04); Leann Bowen e Javier Scott (1X02)
Elenco:
1X01 – Derek Waters, Anna Konkle, Rob McElhenney
1X02 – Shalita Grant, Rome Flynn, William Stanford Davis, Bria Samoné Henderson, Ramon Reed, Leonard Robinson, Gary Kraus
1X03 – Annamarie Kasper, Esai Morales, Asjha Cooper
1X04 – Van Crosby, Melanie Brook, Alice Wen, David Andrew Calvillo, Justin Jarzombek, Dash McCloud
Duração: 28 min. (1X01), 29 min. (1X02), 34 (1X03), 27 (1X04)

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