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Crítica | Shin Godzilla (2016)

Kaiju e política.

por Luiz Santiago
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Talvez a coisa mais impressionante que tenhamos na concepção de Shin Godzilla seja o fato de que ele não parece ser um “típico filme” do personagem; e embora os desafetos da obra usem essa mesma frase para suportar os insustentáveis argumentos de depreciação (pois não há base técnico-narrativa, estética ou dramática aceitáveis para classificar este filme como algo inferior a “bom“, a não ser em considerações exclusivamente emocionais), o fato de não parecer um “típico filme de kaiju” é sim uma indicação extremamente positiva de um respiro na abordagem para o tema, procurando valorizar caminhos pouco ou nunca antes explorados pelos cineastas envolvidos nesses projetos. A obra traz tanta coisa marcante em seu bojo, que se sagra como um ideal de abordagem, do tipo “como deveriam ser” os filmes de Godzilla. E depois de 30 longas-metragens com o lagartão, para comparar (na contagem de 2016, claro), isso significa muita coisa.

Estreia (nomeada retroativamente) da Era Reiwa na franquia do titã atômico e também o primeiro filme da antologia Shin — seguido por Evangelion, Ultraman e Kamen Rider –, Shin Godzilla superou as expectativas dos produtores, que visavam, no máximo, uma boa recepção geral de crítica e público, mais ou menos como tiveram em 2001, com O Ataque dos Monstros Gigantes. Nada, porém, havia preparado a Toho para lidar com a merecida enxurrada de apreciação que envolveu o filme, tornando-se um sucesso de bilheteria e conseguindo elevar-se como um marco definitivo na franquia. A movimentação na obra é intensa, desde as primeiras cenas, e o número de personagens é absurdo de grande, sustentado por um bom elenco e uma direção de atores que não perde a mão nos estereótipos. Sim, existem alguns passos em falso na dramaturgia, mas todos estão na linha do aceitável, sem passar metade da obra insistindo num tipo de comportamento que desvia o foco ou atrapalha o andamento geral das sequências, como já vimos acontecer tantas vezes no núcleo humano dos filmes de monstros.

Quando do lançamento da obra, alguns articulistas comentaram que Shin “não tem personagens”, e que, na verdade, todos são “cabeças falantes” que giram exclusivamente em torno do monstro em cena. Notem que esse tipo de pensamento constata exatamente o que deve ser o núcleo humano num filme de kaiju; e é exatamente por isso que Shin é praticamente perfeito em sua abordagem: os humanos aqui são um acessório dramático cuja existência é exclusivamente em prol da ameaça, seja como fuga, seja como preparação ou reflexão de uma estratégia de combate. Se eu quisesse assistir a um filme para me importar imensamente com os personagens e suas histórias particulares, eu pegaria um clássico de Ingmar Bergman, Yasujiro Ozu ou Michelangelo Antonioni! É necessário ter uma mente em estado avançado de sandice para entrar em uma sessão de Godzilla e acreditar que o roteiro do filme irá/terá a obrigação de mostrar um “drama humano potente“, como se o núcleo humano tivesse que existir à parte, numa obra como essas. E não, não tem! Filmes de monstros devem exclusivamente privilegiar os monstros, e se o núcleo humano não for mínimo, ele deverá girar única e exclusivamente em torno do bicho. Caso contrário, teremos um melodrama desengonçado, interrompido pela existência de um ser colossal e destruidor que acaba não fazendo sentido em meio a choramingos familiares e crises existenciais ou filosóficas de meia dúzia de fulanos com os quais ninguém se importa. E depois ainda reclamam que “os filmes de Godzilla são ruins“. Por que será, né?

Esse tratamento de núcleo humano diminuído ou focado em Godzilla é tão importante que, aqui em Shin, nós chegamos a torcer pelos humanos e compramos plenamente a ideia de que o lagartão é mesmo uma ameaça que deve ser exterminada. É uma situação tão forte, que a máxima “ou ele, ou nós” está estampada no enredo e toma conta do público. Essa impressão é construída com uma excelente demarcação de funções administrativas e burocráticas, com agentes do governo em reuniões, discutindo possibilidades de ataque, planos de evacuação da população e cooperações internacionais. Como a linha do tempo do filme é de uma ocorrência inédita para essa realidade (basicamente o Gojira de 1954, só que ambientado com a tecnologia e situações geopolíticas de 2016), temos um afunilamento estético e de percepção dos personagens que se equiparam à visão do público: ninguém sabe o que está acontecendo e tenta, no real tempo fílmico, trabalhar com uma série de resoluções práticas. Costurando isso, há uma aula de relações internacionais; uma reflexão potente sobre as bombas de Hiroshima e Nagasaki, explodidas no Japão pelos Estados Unidos no contexto da 2ª Guerra Mundial; o fato de o Japão ter se tornado um “Estado fantoche” dos EUA no pós-guerra; uma crítica ao extermínio de vidas em prol de lucro industrial; e um grito contra o não-compartilhamento tecnológico-científico entre as nações, especialmente para encontrar a solução de problemas que afetam a todos.

Notem que o lado político do clássico cinquentista está presente aqui, atualizado e expandido, com o núcleo humano inteiro dissecado em sua capacidade de trabalhar para a defesa de si e da nação, o que não tira de cena as ambições de poder e a capacidade de relações interpessoais mais próximas. O texto é denso e cheio de diálogos, num dos poucos momentos do cinema de ação onde a verborragia não apenas faz sentido, mas é coerente com a proposta do diretor, ao mostrar a “novidade de uma Era” a partir dos responsáveis por administrá-la. Nessa ponte entre passado e presente, o roteiro político e realista de Hideaki Anno e Sean Whitley cria situações nostálgicas através da trilha sonora, homenageando o tema central de Akira Ifukube, mas também mostrando o excelente trabalho de Shiro Sagisu; através do desenho do monstro (partindo da bizarra e excelentemente tosca versão inicial até a forma evoluída, soltando raios pelas dorsais e pela cauda); e culminando no belíssimo “inferno na Terra” que Godzilla cria com suas rajadas de fogo, seu sopro atômico e seu raio laser. As sequências imediatamente após o bombardeio estadunidense, com trilha operística de Sagisu, a mudança da cor na dorsal, a abertura aterradora da mandíbula e toda a aniquilação provocada pelo lagartão estão no meu TOP 3 momentos mais lindos que eu presenciei em um filme de Godzilla.

Shin Godzilla é um filme diferente porque, embora mantenha a mesma abordagem de estrutura narrativa para a presença do monstro desde o clássico de Ishiro Honda, faz isso com um ar renovador na arquitetura dramática, explorando o núcleo humano com uma verborragia institucional e científica nunca antes vista em um filme da série (e não falo isso como algo negativo) ou tornando o filme respeitável não apenas como “mais um capítulo na saga do Rei dos Monstros“, mas como filme, ponto. Até mesmo a ideia diferente para a movimentação e ações de Godzilla, aprendendo pouco a pouco as suas capacidades de movimentação e com um gasto inconsequente da própria energia, me fascinou. Afinal, é um bicho que evolui rápido e que claramente tem algum nível de inteligência, mas seu instinto de ataque/defesa ainda prevalece, e é isso que acaba trazendo-lhe a derrota. A despeito de apresentar um certo desajuste de ritmo nas cenas posteriores à vitória humana sobre o monstrão, Shin Godzilla é a prova de que, com um bom diretor e bons roteiristas no projeto, é possível renovar uma fórmula batida e, sob uma base clássica, construir algo de altíssima qualidade num contexto muito inteligente. Um verdadeiro kaiju para todos governar!

Shin Godzilla (Japão, 2016)
Direção: Hideaki Anno, Shinji Higuchi
Roteiro: Hideaki Anno, Sean Whitley
Elenco: Hiroki Hasegawa, Yutaka Takenouchi, Satomi Ishihara, Ren Ôsugi, Akira Emoto, Kengo Kôra, Mikako Ichikawa, Jun Kunimura, Pierre Taki, Kyûsaku Shimada, Ken Mitsuishi, Shingo Tsurumi, Kimiko Yo, Takumi Saitô, Takashi Fujiki, Yû Kamio, Suzuki Matsuo, Takahiro Miura
Duração: 120 min.

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