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Crítica | Sherlock: The Abominable Bride

por Luiz Santiago
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Spoilers!

Quando o anúncio de que um Especial de Sherlock seria feito para “compensar” a longa espera dos fãs pela 4ª Temporada (His Last Vow, o finale da terceira, foi ao ar em janeiro de 2014), muito se especulou sobre qual seria o tema e como os eventos vistos anteriormente se encaixariam nesse novo capítulo da série. Então Mark Gatiss e Steven Moffat anunciaram o enredo de The Abominable Bride e sobrou apenas confusão e um pouco de apreensão para os fãs, que na esteira do “esperar para ver”, compraram a ideia de um episódio/filme realmente apartado da atualidade, encerrado na década de 1890 e com uma aventura alternativa, apenas para diversão.

Conhecendo, porém, a carreira de Gatiss e Moffat, não era de se esperar inteiramente que The Abominable Bride fosse de fato um episódio solto. Os autores se utilizaram do gancho do Palácio Mental de Sherlock para criar um enredo que servia ao mesmo tempo de revisão de fatos do passado e construção de uma história que funciona sim de forma isolada mas que se ergue, por seu significado e trabalho com a mitologia da série, como ponto de partida para a 4ª Temporada (previsa para 2017, se não for adiada mais uma vez), problematizando a volta do Professor Moriarty.

A narrativa de abertura reconta o encontro do Dr. John Watson com o detetive Sherlock Holmes, já dentro de um outro tempo e sob uma outra perspectiva. A estrutura do roteiro se parece muito com a de A Study in Pink, da 1ª Temporada, e parece manter esse tom mais didático e mais casual na parte do episódio centrada no século XIX, do começo da projeção até o momento em que o assassinato de Sir Eustace Carmichael acontece. Daí em diante o texto ganha outro ritmo, torna-se mais reticente (incrementando o enigma), muito mais rápido e apontando para vários caminhos ao mesmo tempo. Outra abordagem, mais simples, mais cínica e mais condescendente é adotada pelos autores no bloco do presente, que no desfecho tem a maior estranheza narrativa do episódio, pela forma como expõe o cliffhanger. Já o final, puramente cômico e irônico, faz um jogo metalinguístico com a quarta parede, sem necessariamente quebrá-la mas jogando com a base de toda a narrativa do episódio, o que acaba funcionando muito bem.

A construção do cenário vitoriano cria uma atmosfera propícia para o tipo de fake mystery a que somos apresentados, entre fotografia escura, figurinos austeros, névoa e desenho de produção sombrio, com interiores de madeira escura e maior número de peças que transitam entre o neutro e o frio. Mais adiante, o contraste com o “outro quarto” do Palácio Mental de Sherlock (a sequência da cachoeira) e o maior impacto com a aparição iluminada do presente têm impacto positivo na transição dessas histórias para o espectador, que tanto por isso quanto pelo roteiro consegue identificar e se localizar de forma precisa e emotiva em cada um dos locais.

Há quem possivelmente se sentirá “agredido” porque o texto conta uma história mas ao final de tudo “não conta nada”, uma defesa que deixa passar duas coisas importantes: o conceito previamente apresentado das viagens mentais do protagonista e a justificativa dada no presente de que Sherlock estava sob o efeito de drogas. Entendo que o final do episódio se mostra um pouco aquém da interessante apresentação do mistério e sua ligação entre tempos e dramas, mas nada disso atrapalha o jogo detetivesco e tampouco descarateriza a obra por nos propor esse jogo, afinal, todas as histórias existem, mas não do mesmo jeito.

Mesmo depois de tanto tempo, Benedict Cumberbatch e Martin Freeman parecem muitíssimo a vontade em seus papeis, criando sutilizes identificáveis em cada uma das épocas representadoss, o que é um presente para o público. Claro que nem todo o elenco segue o mesmo padrão, mas as grandes bandeiras da série seguem representando muito bem, o que era essencial para um Especial como esse depois de uma pausa tão longa e com o retorno que expõe temas difíceis de serem vistos na tela sem elevar sentimentos morais do público, como a inserção do machismo e misoginia nas falas e atitudes dos personagens. Discussões paralelas também ganham espaço, como o sufrágio universal e os medos de “grupos políticos” expostos pelo Watson vitoriano, que cita socialistas e anarquistas entre possíveis vilões por trás de uma “guerra vencida”.

A competente montagem de Andrew McClelland une todos esses temas dentro de um ciclo visual único, tanto pelo ritmo interno dos planos quanto pelas transições utilizadas. Há, talvez, alguma preguiça em sua montagem no início da sequência da igreja, mas ainda assim, nada que minimize o ótimo trabalho feito durante o Especial, com destaque para o primeiro bloco da história (da guerra até a apresentação do caso da noiva abominável pelo Inspetor Lestrade) e para todas as cenas entre Sherlock e Moriarty, cujo primeiro encontro transborda um quê de libido que deixa a ambos (e talvez a alguns espectadores) desconfortáveis, mas vejam, este tema já foi discutido inúmeras vezes desde a 1ª Temporada: a tal “tensão” é apenas uma forma de abordagem para o encontro esses dois homens geniais que normalmente não expressam libido. E este é um recurso que funciona bem pelo incômodo e pelo “flerte” infame gerado pelas duas personalidades, algo que se dissipa em um encontro futuro, dando lugar a um outro sentimento dominante.

Exibido em 1º de janeiro de 2016, The Abominable Bride abriu o ano com uma peça televisiva criativa, inteligente e bem executada, contando histórias válidas, cada uma em seu espaço e realidade, e que lançam as bases para o retorno de um Moriarty que definitivamente está morto. O que isto quer dizer exatamente, apenas o futuro dirá.

Sherlock: The Abominable Bride (Reino Unido, 1º de janeiro de 2016)
Direção: Douglas Mackinnon
Roteiro: Mark Gatiss, Steven Moffat
Elenco: Benedict Cumberbatch, Martin Freeman, Una Stubbs, Rupert Graves, Mark Gatiss, Andrew Scott, Louise Brealey, Jonathan Aris, Yasmine Akram, Tim McInnerny, Natasha O’Keeffe, Taj Smith, Gerald Kyd
Duração: 89 min.

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