Desde que Shadow apareceu no circuito internacional em 2018, seu diretor, Zhang Yimou, já lançou três outros filmes, tendo recentemente acabado o quarto, o que mostra que, mesmo levando em consideração a pandemia, a estreia do longa no cinemas do Brasil tanto tempo depois chega a ser surreal. Seja como for, depois do decepcionante A Grande Muralha, o cineasta chinês voltou para suas raízes wuxia, ou de artes marciais, que ajudaram a solidificar sua carreira fora de seu país com obras como Herói e O Clã das Adagas Voadoras, em uma abordagem inspirada bem de longe em eventos históricos sobre os feitos militares do General Zhou Yu, que permitiu que Wu Oriental fosse um dos chamados Três Reinos que competiram pela supremacia na China depois da queda da Dinastia Han.
No longa, o general histórico é o Comandante Ziyu (Deng Chao) que, ferido em um duelo contra Yang Cang (Hu Jun), secretamente passa a agir abertamente, diante de seu Rei Peiliang (Zheng Kai), por intermédio de seu duplo – ou “sombra” – Jingzhou (também Deng Chao) em uma trama complexa, cheia de estratagemas e traições monárquicas que, trocando em miúdos, gira em torno da retomada da cidade de Jingzhou (que, você não leu errado, é o nome do “sombra” que foi dado por Ziyu justamente para ele ter sempre um lembrete desse objetivo) pelo reino de Pei. A primeira hora de projeção é dedicada a armar, com toda calma do mundo, o tabuleiro de xadrez das intrigas palacianas e dos planos secretos do comandante usando Jingzhou como seu principal, mas não único, peão e é possível que muita gente se sinta aborrecido pela progressão lenta da narrativa, especialmente diante do fato – que só é verificável em retrospecto – que o resultado final é até bastante objetivo e “simples”.
Mas o roteiro que Yimou co-escreveu com Wei Li não só tem o objetivo de lidar com as diversas camadas da história que conta, inclusive e especialmente com a subtrama de amor impossível entre Jingzhou, não mais do que um servo, e Xiao Ai (Sun Li, casada com Deng Chao na vida real), esposa de Ziyu que, claro, sabe do segredo e a relação de Peiliang com sua irmã mais nova Qingping (Guan Xiaotong), como também abrir espaço para o espetáculo visual que o diretor oferece graças à suntuosa direção de arte de Horace Ma e à impressionante fotografia de Xiaoding Zhao. Para ser sincero, o roteiro nem sempre acerta no que tenta fazer, por vezes desnecessariamente complicando a história e, por outras, não desenvolvendo suficientemente alguns personagens, como é justamente o caso de Peiliang e Quingping, mas a grande verdade é que o foco de Yimou está na beleza visual de sua criação.
Em termos comparativos, Shadow é o exato oposto de O Clã das Adagas Voadoras. Enquanto o excepcional longa de 2004 é um deslumbramento multicolorido com as lutas coreografadas de maneira superlativa com o uso generoso de wire-fu, Shadow é um triunfo das tonalidades de cinza e de pancadaria estilizada que foca mais nos armamentos e nos efeitos visuais que eles causam diante da câmera. O universo de Shadow, até para rimar com o que tanto o Comandante Ziyu quanto Jingzhou são, o primeiro uma sombra do que fora e, o segundo, uma literal sombra, é quase que completamente em preto e branco, mas sem que a fotografia seja em preto e branco. É, talvez, o máximo que seja possível fazer sem realmente tirar as cores completamente, já que o delicado trabalho de Zhao mantém os tons de pele ainda visíveis e claramente destoantes do que vemos ao redor e que é enriquecido por espetaculares figurinos na mesma paleta de cores.
Sem dúvida alguma, Yimou estava mais preocupado com a estética do que com a substância de sua história, ainda que haja estofo suficiente na narrativa para que seja perfeitamente possível nos compadecermos pela jornada de Jingzhou, um homem que sacrificou sua vida por outro, mas sempre desejando ou almejando retornar para sua cidade natal e, talvez, ver sua família. Deng Chao, aliás, vive as duas “versões” do comandante de maneira brilhante, com a equipe de maquiagem, cabelo e figurino ajudando a criar personalidades tão distintas que por vezes cheguei a duvidar que era o mesmo ator nos dois papeis, algo que Yimou facilita ao evitar close-ups, artifício, aliás, que permeia toda a projeção talvez para manter o espectador distante dos personagens e de sua verdadeiras intenções, já que há reviravoltas dentro de reviravoltas no roteiro.
Mas o espetáculo visual definitivamente estava no topo da lista dos objetivos do cineasta ao idealizar o filme, já que o esmero técnico é invejável, com um resultado que, pessoalmente, acho ainda mais bonito que o mundo tecnicolor de seus mais famosos filmes do gênero wuxia. O uso de guarda-chuvas como arma em uma ambientação de superfícies eminentemente molhadas, o que cria oportunidades para a fotografia trazer muito luz à lugubridade das localidades, é outro ponto alto, com coreografias realmente belíssimas, especialmente na segunda metade do longa quando os preparativos para o ataque finalmente começam. Há diretores por aí que são elogiados por trabalharem paletas de cores sombrias e constante uso de câmera lenta, mas o que Yimou faz aqui com esses dois artifícios está tão acima de seus pares que a mera tentativa de comparação é risível.
Shadow inegavelmente demora a engrenar e isso pode afastar os mais afoitos, mas Zhang Yimou cria um mundo monocromático engajante que paga generosos e violentos dividendos para quem souber esperar. No entanto, mesmo a espera é saborosíssima, cheia de detalhes a serem apreciados e a ser absorvidos por quem tiver um olhar que vá além do imediatismo que tanto se procura hoje em dia. O filme pode ter demorado a aportar por aqui, mas a experiência é recompensadora.
Shadow (Yin/影 – China/HongKong, 2018)
Direção: Zhang Yimou
Roteiro: Wei Li, Zhang Yimou
Elenco: Deng Chao, Sun Li, Zheng Kai, Wang Qianyuan, Hu Jun, Guan Xiaotong, Leo Wu, Wang Jingchun
Duração: 116 min.