Equipe: 4º Doutor, Romana II, K-9 Mark II, Chris, Clare
Espaço-tempo: Cambridge, 1979 / Think Tank, passado e 1979 / Planeta-prisão Shada, 1979 / Estação de operações de Skagra, passado e 1979 / Planeta Dronid, passado e 1979.
Shada: O “arco maldito”
Algumas coisas em Doctor Who são mergulhadas em mistério, dúvidas, especulações e situações insólitas. Shada, com certeza, é um dos mais decisivos exemplos.
O arco de mesmo nome teve o roteiro escrito por Douglas Adams e deveria fechar a 17ª Temporada da Série Clássica. À época, Adams estava com uma série de compromissos como escritor, tendo não só esse roteiro em mãos para concluir os ajustes, mas também que vistoriar todos os outros roteiros de DW produzidos na época, já que ele ocupava o cargo de Editor de Roteiros da 17ª Temporada. Além disso, o autor estava escrevendo o segundo livro da série do Mochileiro das Galáxias (O Restaurante no Fim do Mundo) e mais dois roteiros baseados na mesma saga, um para a 2ª Temporada da série no rádio e outro para um Piloto de TV.
Com todo esse tsunami de trabalho em mãos, Adams escreveu Shada em pouquíssimo tempo e rapidamente entregou o roteiro para a produção, muito embora essa não fosse a intenção do autor. Os prazos, porém, não o permitiam-no fazer diferente.
O arco começou a ser filmado. As três primeiras partes foram realizadas com sucesso, mas as três últimas não chegaram a ser concluídas. A BBC teve suas atividades interrompidas devido a uma greve e todos se viram fora dos estúdios. Como era impossível exibir um arco pela metade, a aventura foi arquivada, sendo exibida nessas mesmas condições apenas em 1992, com uma introdução e narração das partes faltantes feitas por Tom Baker.
Além da novelização do roteiro realizada de maneira louvável por Gareth Roberts em 2012 e do arco incompleto de TV, ainda existe um webcast da BBC lançado em meados de 2003 e um audiodrama especial da Big Finish lançado em dezembro do mesmo ano. Ambas as produções foram uma parceria da BBC com a Big Finish. A primeira, ficou responsável em fazer a animação; a segunda, em gravar o áudio da trama. Assim, se você assiste ao webcast, não é necessário ouvir o audiodrama, simplesmente porque é a mesma coisa, só que sem imagens.
O livro de Gareth Roberts
O trabalho de Gareth Roberts era aparentemente fácil, segundo ele próprio aponta, no Posfácio do livro. Para um escritor experiente, pegar um roteiro de TV e a partir dele criar um romance de ficção científica apenas completando as partes faltantes e dando sentido a outras partes não demandaria tanto esforço assim. Aparentemente.
O fato é que Roberts não queria fazer um trabalho que fosse apenas a colocação da dinâmica da TV em um livro. Isso não faria sentido. O que o autor faz é realmente adaptar a excelente ideia de Douglas Adams e atualizá-la com elementos da Nova Série e características próprias da liberdade e cotidiano de nosso tempo, como a incursão aberta de um personagem homossexual em um encontro romântico, indicações sexuais por parte da Nave de Skagra (ideia genial!) e adição de tecnologias comuns nesse início de século XXI.
A história é extremamente interessante desde a sua concepção, como podemos ver já no início do Capítulo 1:
Aos 5 anos, Skagra concluiu sem sombra de dúvidas que Deus não existia. A maioria das pessoas que chegam a tal constatação reage de uma das seguintes formas — com alívio ou com desespero. Somente Skagra reagiu pensando: “Peraí. Isso significa que existe uma vaga disponível.”
O inimigo em questão é Skagra, um homem genial, natural do Planeta Dronid, uma colônia de Gallifrey. Com grande conhecimento de genética, astro-engenharia, neuroestruturalismo e teologia moral, Skagra tem um sonho diferente. Ele não é um vilão comum, daqueles que simplesmente querem o Universo todo para si, embora acusá-lo disso seja uma estratégia do Doutor para distraí-lo. O plano de Skagra é fazer com que exista uma mente universal, uma única mente, a mente dele.
A aventura é uma verdadeira viagem pelo Universo, pelo passado de Gallifrey, seus Antigos Párias, a chegada a Shada (que é ao mesmo tempo o nome do asteroide ou planetoide e o nome da prisão dos Time Lords), a discussão sobre os crimes do Alto Conselho de Gallifrey, o poder do O Venerável e Ancestral Livro das Leis de Gallifrey, a deliciosa companhia de dois humanos, estudantes de Cambridge, e a citação de nomes que até então não conhecíamos e que nos dá uma interessante visão sobre alguns Time Lords do início da Era Rassilon:
- Rundgar: acusado de crimes de guerra;
- Subjatric: acusado de assassinato em massa;
- Salyavin: acusado de “crimes da mente”;
- Lady Scintilla: acusada de conspirar com Carrionites.
A atmosfera é tal e qual as aventuras do 4º Doutor e tem a cara de Douglas Adams, com um quê de século XXI no meio. Os diálogos são geniais, muito bem construídos e com raras firulas; as descrições geográficas e de cenários internos em geral são precisas mas não enjoativas; a narrativa é ágil e transcorrem em blocos equilibrados de ação, onde temos foco no Doutor e Romana, depois em Clare e professor Chronotis, depois em Chris, depois em Skagra e assim por diante. Isso nos deixa progressivamente curiosos para completar o andamento dos blocos anteriores e ao mesmo tempo nos mostra a opção de Gareth Roberts em afunilar toda a história e todos os pontos para um único espaço-tempo ao final da trama.
Shada é uma obra capaz de fazer qualquer whovian pular de alegria durante e após a leitura. Além de bem escrita, ela nos apresenta uma visão completa e extremamente rica de um arco deixado pela metade e sobre o qual tanto se especulou. Trazendo o bom humor, a brincadeira com a ficção científica, a inteligente metalinguagem e a cativante forma narrativa de Douglas Adams, Gareth Roberts entrega um produto de qualidade e inesquecível aos seus leitores. Shada é definitivamente um livro que sabe se comportar bem. E isso é elogio e tanto vindo de um crítico natural de um Planeta Nível 5.
Shada (Reino Unido, março de 2012)
Lançamento no Brasil: fevereiro de 2014 (Suma de Letras)
Autor: Gareth Roberts (baseado no roteiro de Douglas Adams)
350 páginas