Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | Sertãopunk: Histórias de um Nordeste do Amanhã

Crítica | Sertãopunk: Histórias de um Nordeste do Amanhã

Um novo gênero para a literatura brasileira.

por Luiz Santiago
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Publicado em 2020, Sertãopunk: Histórias de um Nordeste do Amanhã é um livro que funciona em duas dimensões. Uma teórica, onde temos textos de apoio dos artistas responsáveis pela criação do gênero Sertãopunk, e outra puramente literária, com dois contos que servem como aglutinadores de todo o arcabouço teórico cedido na primeira parte. Trata-se de uma obra pequena, mas muito interessante e muito rica a respeito de novas formas de olhar e pensar a literatura nordestina ou sobre o Nordeste. Nos quatro textos formadores, Alan de Sá e G.G. Diniz (há também aqui um breve pitaco de Alec Silva, na introdução) falam sobre experiências pessoais em termos religiosos, étnicos, de gênero, políticos e de sociabilização, fornecendo instrumentos para o leitor acessar essas experiências através das letras e, a partir daí, entender o princípio geopolítico e sociocultural que gerou o Sertãopunk.

O primeiro desses textos é Por que fazer o Nordeste Sertão Punk?, que dá as bases produtivas da abordagem literária. A seguir, temos 3 contemplações que ligam essa nova proposta a créditos já existentes: Solarpunk (com foco na sustentabilidade e economia verde), religiosidade afrobrasileira, Afrofuturismo e diásporas. Como se vê pelos títulos, existe uma preocupação dos artistas em revisitar as referências que fertilizaram o solo literário para o surgimento do Sertãopunk, e há também uma aplaudível e humilde abertura da dupla para possíveis “reclamações de uso” do gênero e uma discussão muito proveitosa sobre a produção literária a partir de olhares sudestinos (e não raramente brancos) que tendem a fazer uma caricatura do que é a “realidade nordestina” ou mesmo da “literatura regional“. Por mais que a intenção da obra seja plantar as sementes de um novo caminho para a nossa ficção científica, ela acaba abraçando muito mais coisas, tocando em problemas maiores e bem mais antigos de nossas letras.

O primeiro conto após a parte teórica é Os Olhos dos Cajueiros, de G.G. Diniz, que se passa no Ceará e alinha sua visão Sertãopunk ao procedimento investigativo da literatura policial. Trata-se de uma narrativa encantadora e, infelizmente, muito curta, sobre o assassinato de um jovem (que logo descobrimos não ser exatamente “flor que se cheire“) em um campus universitário. É um prazer enorme para o leitor ver muitas das ideias teorizadas no início do livro aparecerem tão bem exploradas nessa narrativa. É possível entender claramente a proposta de pensar tecnologias e situações de infraestrutura e economia marcantes para o Nordeste brasileiro, mas sem a utopia fofucha de achar que estamos falando de um tempo e espaço livre de problemas, crimes e comportamentos infames de homens e mulheres. As questões de classe, de gênero e políticas perpassam o conto e trazem, além da amargura por vermos aí um espelho de nosso presente, uma profunda abordagem material da escritora, que não ignora certas forças e arranjos sociais e projeta alguns deles para esse novo ambiente, mantendo a sua necessária discussão.

O segundo e último conto da coletânea chama-se Schizophrenia, e foi escrito por Alan de Sá. Ambientado em Feira de Santana, Bahia, a trama se aproxima da fantasia, flertando e referenciando uma mistura de O Médico e o Monstro (num aspecto classista e de relação interpessoal) com Frankenstein e Matrix. Em sua abordagem, o autor leva o título bastante a série e permite que o leitor também embarque nas mais aterradoras alucinações do protagonista, descritas com cuidado para não parecerem uma coleção de bobagens. E ainda há uma surpresa na parte final, quando a atmosfera da obra é reformulada e tudo ganha um significado diferente, surpreendendo o leitor. Passamos de parágrafos num estranho futuro, atravessamos penosamente as perturbações mentais de um jovem, e terminamos em um espaço que nos remete às tramas de “cientistas malucos” da literatura gótica do século XIX. Por conta dessa amplitude de situações e ingredientes, acabei favoritando este aqui, embora tenha adorado Os Olhos dos Cajueiros.

Sertãopunk: Histórias de um Nordeste do Amanhã é uma produção que embarca na projeção do futuro da humanidade e se dispõe a falar sobre isso em território nacional. Sem lançar mão de estrangeirismos bizarros e enredos irritantemente mirabolantes (muitas vezes com subserviente reverência aos Estados Unidos; um veneno que contamina um número assustador de novos escritores brasileiros), Diniz e Sá acrescentam uma nova camada à literatura brazuca, aglutinando a materialidade das ações humanas, seu impacto e seus resultados, e discutindo problemas que provavelmente ainda teremos por muito tempo em nossa civilização. É impossível chegar ao final e não desejar uma série de romances com essa temática. O futuro já está aqui. Bem-vindos ao Sertãopunk!

Sertãopunk: Histórias de um Nordeste do Amanhã (Brasil, 2020)
Autores: Alan de Sá, Alec Silva, G.G. Diniz
Editora: Independente
55 páginas

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