Na ocasião de análise do polêmico Sereias – O Corpo Encontrado, busquei me debruçar diante do impacto que os falsos-documentários causaram na seara da comunicação e do entretenimento contemporâneo, estratégia de narratividade que não é exatamente tão nova quanto se pensa, haja vista as “pegadinhas” de Orson Welles e Woody Allen em dois grandes momentos da produção cultural ao longo do século XX. Subversivos, os documentários que tomam como verdade um tema ficcional podem ser considerados ousados, se olhados pelo viés da busca por novos mecanismos de consumo no terreno da produção audiovisual, mas também um perigoso catalisador das notícias falsas que tem minado a confiança da sociedade nas instituições e discursos que circulam diariamente em redes sociais, aplicativos e até mesmo em canais outrora considerados renomados e de confiança. No caso de Sereias – Novos Indícios, o meu olhar foi direcionado para questões ligadas ao que Jung chamou de inconsciente coletivo, conceito da psicologia analítica que nos ajuda a compreender os temas debatidos ao longo dos 41 minutos do documentário em questão.
As sereias ocupam o inconsciente coletivo de quase todos os povos. Essa é uma afirmação verdadeira ou falsa? Para quem estiver diante de uma questão objetiva ou subjetiva sobre o assunto, a resposta seria verdadeira. E de fato, é. O inconsciente coletivo é uma espécie de observação mais profunda da psiquê, algo constituída por materiais herdados, inerente a todos seres humanos. Alegoricamente, podemos pensar num baú de significados que herdamos como grupo social que afeta, ao longo de nossa trajetória, comportamentos e emoções. As suas representações não são observáveis em si, mas através de imagens que eles proporcionam, em suma, um arcabouço de arquétipos expandidos pela psique humana. É o que encontramos nos desdobramentos de Sereias – Novos Indícios. Dirigido por Christina Bravetta, cineasta que toma como guia, o inventivo e burlesco roteiro escrito por Jamie Dugger e Vaibhav Bhatt, o filme pode ser considerado como uma continuação do igualmente polêmico Sereias – O Corpo Encontrado, material preenchido por supostas imagens de sereias encontradas e omitidas por instituições oficiais do campo atmosférico e oceanográfico dos Estados Unidos, organizações que aparentemente num complô, estariam focadas em esconder das pessoas a verdade por detrás da existência de sereias, seres que até então, habitam o imaginário coletivo por meio de explicações teóricas e mitológicas, aqui encaradas como reais.
Produzido por Charlie Foley, o documentário é parte integrante da grade do Animal Planet e na ocasião de lançamento, teve notas de setores oficiais e muito alvoroço na mídia, preocupada, mas também fascinada com o potencial do material em levantar polêmica e até mesmo assustar alguns espectadores que ficaram perplexos com o formato e disseminação das teorias representadas por atores que de alguma forma, passaram credibilidade diante de algo “fake”. Com montagem que mescla tela chuviscada, imagens provenientes de movimentos de câmeras bruscos e extraídas de amadores, Sereias – Novos Indícios é uma curiosa jornada pelo campo do entretenimento que busca se reinventar e entregar ao público novos formatos, mesmo que a recepção não seja unânime em apoio ao que é proposto. Falsos cientistas, truques deliberadamente orquestrados pela supervisão de efeitos visuais comandada por Mark Braithwaite, guiada pelo design de produção de Johnny Jenkins, erguido com base na divisão entre imagens amadoras e espaços discursivos tradicionais, tais como bancadas de telejornais e afins, cenários próprios para a edificação de discursos hegemônicos e supostamente galgados na realidade do que é noticiado.
O mote da produção é a conspiração por detrás do governo, responsável por esconder coisas que de acordo com os depoimentos encenados, deveriam ser expostos para a população. Conduzido pelo apresentador John Frankel, presente num mesa-redonda com a participação do Dr. Paul Robertson (David Evans), do geólogo Torsten Schimidt (Albert Bendix) e de Barrent Brent (Ronald Scott Maestri), especialista em Circos e espetáculos americanos, o filme traça um painel de teorias reais e outras falsas verdades para compor o amplo feixe de subversões da obra que se aprofunda na Teoria do Macaco Aquático. Esboçada pelo patologista alemão Max Westenhofer por volta de 1942, a teoria foi ajustada em 1960 pelo biólogo inglês Alister Hardy. Basicamente, a linha de reflexão afirma que os nossos antepassados viviam numa fase semiaquática, a colher moluscos e animais ao longo de faixas litorâneas. Foi neste período que, supostamente, perderam parte do pelo corporal e aumentaram consideravelmente as suas camadas de gordura e ficaram com a postura ereta tal como nos locomovemos hoje. Em determinado momento, a evolução partiu para vários caminhos e o oceano é um deles. Para reforçar a teoria e lhe dar alguma sustentação, alguns pontos curiosos são levantados. O fato de sermos os únicos primatas que não tem o corpo coberto de pelos, algo que ocorre apenas com os animais aquáticos e subterrâneos. A nossa respiração, por exemplo, é diferente da maioria dos animais e temos a capacidade de controla-la dentro da água, voluntariamente, ao podermos inalar a quantidade de ar suficiente e voltar para respirar. As lágrimas, a sudorese e a porção de pele que separa o polegar do dedo indicador também é parte das análises que tentam embasar a teoria e aqui, explicar a possibilidade da existência de sereias.
Absurda? Sim! Cheia de incoerência? Sim! Debatida ainda hoje? Bastante, pelos mesmos tolos que discutem temas como o terraplanismo e outras bobagens. No final da jornada, percebemos que o documentário é uma produção própria para uma sociedade em busca de novidades, de resposta para determinados mistérios que não encontramos as respostas, etc. Aos interessados, o dugongo é o animal marinho, da família do peixe-boi, confundido por muitos navegadores do nosso passado, homens embasados em mitos que acreditavam na existência de sereias. Houve até um circo de horrores que trabalhou na exibição de metade da carcaça deste animal com um primata, acredita? Isso mostra que o fascínio pelo tema e a falta de bom-senso dos envolvidos no documentário Sereias – Novos Indícios não são assuntos de agora, mas parte da costura de nosso extenso tecido do inconsciente coletivo, conceito proposto por Jung, mencionado na abertura deste texto, tema que pode se manter profícuo num debate sobre as sereias, a mitologia e os desdobramentos do imaginário no forjar de histórias de nosso cotidiano.
Sereias: Novos Indícios (Mermaids: The New Evidence) — EUA, 2013
Direção: Christina Bavetta
Roteiro: Vaibhav Bhatt, Jamie Dugger, Charlie Foley
Elenco: Albert Bendix, James Cotter, David Evans, Jon Frankel, Ronald Scott Maestri
Duração: 42 min.