Obs: Leia nossa crítica da 1ª temporada, aqui.
Sense8 é, ame-a ou odeie-a, uma das séries originais mais ousadas do Netflix. E sua primeira temporada, lançada na metade de 2015, com a segunda prometida para maio de 2017, trouxe arrojo, personagens marcantes e severas críticas sociais com uma história levemente sci-fi costurando tudo por trás. Mas, acima de tudo e mais do que qualquer outra obra audiovisual por aí, Sense8 capturou com perfeição a noção de mundo conectado que hoje vivemos, focando em seu lado construtivo e humano. A sensação de “estar conectado” a tudo e a todos é o grande mote por trás da concepção das Wachowski e de J. Michael Straczynski.
E o improvável especial de Natal da série amplifica essa sensação e tem nela todo o seu foco. Esqueçam a trama sci-fi que permeia a série, ainda que ela esteja presente na sub-trama que lida com Will (Brian J. Smith) e Riley (Tuppence Middleton). Sua inserção no especial se deu, certamente, muito mais pela impressão de “continuidade” que ela empresta a quem acompanha a série do que por alguma necessidade intrínseca. O que realmente importa, porém, é a forma delicada e sofisticada como este telefilme de pouco mais de duas horas entrega uma sensação gostosa de satisfação por fazermos parte de algo maior do que nós mesmos ou do que nossos arredores imediatos. É, em poucas palavras, a condensação dos sentimentos presentes ao longo da primeira temporada que, admito, caminhou perigosamente por caminhos novelescos e exageradamente dramáticos, ainda que tenha resultado em algo especial, realmente desafiador.
O especial de Natal, justamente por não se preocupar com a apresentação dos personagens e com mistérios, vai logo ao ponto – ou aos pontos – e passa a lidar com a vida dos sensate após os eventos do final da temporada. Cada um deles tem seu tempo de tela, ainda que Will e Riley, de um lado, e Lito (Miguel Ángel Silvestre), de outro, tenham mais destaque os demais. Lito em particular tem sua história mais desenvolvida, lidando com a revelação para o mundo de que é gay.
E fazem sentido essas escolhas de Lana Wachowski e Straczynski. Will e Riley, de certa forma, avançam a trama, ainda que, tenho certeza, assistir ao especial não será essencial para a compreensão da segunda temporada. E Lito tem a narrativa imediata mais relevante em termos de comentário social. Ainda que o roteiro carregue no didatismo, ele o faz de maneira inteligente – é particularmente notável a “aula” que Hernando (Alfonso Herrera) dá em um aluno preconceituoso – e, convenhamos, importante nos dias de hoje. Se muitos não entendem ou não querem entender que o que as pessoas sentem e desejam só dizem respeito a elas mesmas, não custa uma abordagem um pouco mais literal, dissecando cada aspecto. E essa linha narrativa continua por todo o especial, com Lito tendo que lidar com seus empregadores, vizinhos, público em geral e, finalmente, sua mãe, já que é nela que o “coração” de toda essa empreitada de Natal reside.
Provavelmente muitos reclamarão da forma explícita como isto é discutido, inclusive com imagens, mas Sense8 não é uma série conhecida por esconder as coisas. Não existe discrição ou puritanismo aqui e o especial de Natal continua nessa veia sem maiores novidades, até porque o sexo é inserido organicamente como elemento narrativo (“sexo é vida”), ganhando, portanto, sua justificativa.
As demais subtramas são boas, mas não particularmente memoráveis. Sun Bak (Doona Bae) continua confinada na solitária, Wolfgang (Max Riemelt) continua tentando achar seu lugar no mundo, Kala (Tina Desai) continua lidando com suas dúvidas sobre seu casamento e Nomi (Jamie Clayton) – com Amanita (Freema Agyeman) – continua fugindo do FBI. O momento que merece mais destaque é o inicial com Capheus e por uma razão muito simples: Aml Ameen foi substituído por Toby Onwumere no papel. No lugar de simplesmente ignorar a mudança, os roteiristas escreveram uma sequência muito inteligente cheia de meta-linguagem com a fotografia em contraluz mantendo o “novo rosto” do personagem escondido até o grande momento da revelação. Com isso, vê-se muito claramente a importância que é dada a cada ator, já que Onwumere é “reconhecido” dentro da trama como o “novo Capheus”, algo realmente raro de se ver por aí.
Aliás, já que o assunto é fotografia, é notável o esmero de John Toll aqui. Ele já demonstrara grande apuro visual durante a temporada inaugural e bem antes disso em obras como Homem de Ferro 3, A Viagem, Trovão Tropical, O Último Samurai e Coração Valente. Sua versatilidade em emudecer as cores e escurecer a fotografia nas sequências na Islândia e de esquentar tudo novamente nas sequências do México ou nos apresentar a uma Nairobi colorida e bela, apesar da miséria é de se tirar o chapéu. Claro que ajuda muito a qualidade do design de produção, com detalhes verossimilhantes em cada um desses países, mas emprestando um toque fabulesco em alguns momentos, quase que com a intenção de funcionar como uma “piscadela” para o espectador que quebra a quarta parede.
O especial de Natal de Sense8, que de Natal só tem mesmo os 25 minutos finais, é um belo presente do Netflix que passa a mensagem certa, no momento certo. União, conexão e tolerância. Querem algo que grita mais essa época do ano do que isso?
*A imagem usada para ilustrar o artigo é promocional do Netflix, não do telefilme em si.
Sense8: Um Especial de Natal (Sense8: A Christmas Special, EUA – 23 de dezembro de 2016)
Direção: Lana Wachowski
Roteiro: Lana Wachowski, J. Michael Straczynski
Elenco: Doona Bae, Jamie Clayton, Tina Desai, Tuppence Middleton, Toby Onwumere, Max Riemelt, Miguel Ángel Silvestre, Brian J. Smith, Freem Agyeman, Terrenca Mann, Naveen Andrews, Daryl Hannah, Purab Kohli, Max Mauff, Alfonso Herrera, Eréndira Ibarra, Paul Ogola
Duração: 124 min.