Home TVMinisséries Crítica | Senna (2024)

Crítica | Senna (2024)

Um herói nacional.

por Kevin Rick
11,8K views

Três décadas depois do fatídico acidente de Ayrton Senna em 1994, no GP de San Marino, a Netflix lança uma minissérie biográfica sobre o piloto que celebra o ícone e que esquenta os corações de todos os brasileiros, seja pela saudade de quem o acompanhou ao vivo, seja a (re)descoberta de novas gerações que não puderam assisti-lo nas manhãs de domingo. Eu particularmente não pude ver as corridas de Senna, mas cresci torcendo por Rubens Barrichello e Felipe Massa (e outros ícones não tão lembrados, como Tony Kanaan e Hélio Castroneves), enquanto tive raiva e também o prazer de assistir grandes campeões como Michael Schumacher, Fernando Alonso, Kimi Räikkönen e afins. Já faz alguns anos que não acompanho a Fórmula 1 com o mesmo afinco – quem sabe agora com Gabriel Bortoleto em 2025 -, mas esta minissérie vem resgatar memórias que estavam vivas mesmo para quem nunca viu Senna correndo ao vivo.

Essa força de Senna no imaginário coletivo brasileiro é praticamente incomparável com qualquer outro atleta nacional, talvez até outros que venceram mais do que ele em seus esportes, algo que a produção captura com muita qualidade, com muito carinho e com muito cuidado em não desmitificá-lo (mais disso à frente). O mito, o personagem e a lenda Senna está bem viva dentro dos seis episódios da minissérie, que com capítulos nomeados para diferentes fases de sua carreira, tem o propósito de recriar grandes momentos e mostrar parte de sua trajetória profissional. Passando por seu início no Kart; suas passagens vitoriosas na Fórmula Ford, Fórmula 2000 e Fórmula 3; e, claro, sua carreira icônica na Fórmula 1, a obra é nostálgica para alguns e uma grande apresentação do legado de Senna para outros.

Diversos momentos marcantes vem à mente enquanto faço a presente crítica, como o GP de Mônaco em 1984, em que Senna domina a corrida na chuva com o carro inferior da Toleman; a decisão do primeiro título do piloto em 1988, no GP do Japão, também na chuva; a polêmica desqualificação de Senna na corrida pelo título em 1989, também no GP do Japão; e, claro, a vitória de 1991 em Interlagos, com Senna resistindo a uma falha na caixa de câmbio para vencer seu primeiro GP do Brasil. Gabriel Leone faz um grande trabalho incorporando Senna, passando tanto pelo seu carisma e imagem gentil quanto por sua personalidade competitiva e obcecada com a vitória. Esses momentos, dentre outros, fazem diferentes recortes da história do personagem, todos em sua maioria utilizados para engrandecer os feitos de Senna, além de proporcionarem um nível de entretenimento muito divertido.

Com um orçamento de blockbuster, a produção brasileira faz jus aos diversos clássicos cinematográficos do automobilismo, com recriações de corridas em sequências de alta octanagem, que misturam elementos práticos com CGI para capturar a sensação de adrenalina, da potência do carro, da imensa velocidade e uma qualidade analógica na demonstração de mudanças de marcha, da força G, da dificuldade das curvas nos GPs e outros aspectos do que é guiar um carro em alta velocidade. A direção brasileira de Vicente Amorim e Júlia Rezende, cheia de cortes bem pensados e ótimos close-ups, fazem frente com a energia, a emoção e a tensão de grandes produções recentes do subgênero, como Rush – No Limite da Emoção e Ford vs Ferrari, mesmo com um orçamento provavelmente mais espaçado entre os episódios.

Outro aspecto que funciona bem durante essa trajetória pelos feitos de Senna são suas rivalidades, começando pela construção antagonista de Jean-Marie Balestre (Arnaurd Viard) e da FIA ao longo de sua carreira, desde o início no kart até seu acidente final, com cutucadas que até insinuam que a federação é culpada pela morte do piloto e dos outros acidentes em 1994. Essa briga de Senna – encapsulando o Brasil – vs estrangeiros é levada também para sua rivalidade icônica com Prost (Matt Mella, muito bem no papel), que tem menos tempo de tela do que gostaria – para mim, é onde o seriado se torna mais interessante de assistir – e com a mídia europeia, personificada aqui pela repórter Laura Harrison (Kaya Scodelario), que essa sim não funciona muito bem nessa personificação da relação de amor e ódio da mídia estrangeira com Senna, justamente porque a personagem soa avulsa e mal encaixada ao longo da minissérie.

Nesse ponto, alguns de vocês devem estar perguntando porque a nota “baixa” mesmo com tantos elogios – e não, não é por causa da Adriane Galisteu. Bem, essa abordagem da produção, apesar de tecnicamente impecável, de uma alta qualidade de produção e por ser muito divertida e comovente, acaba trazendo diversos problemas narrativos. O primeiro deles é justamente como o enredo se torna uma colcha de retalhos de “melhores momentos”, que são legais individualmente, mas que não criam uma história orgânica ou intrigante para além de mostrar os feitos de Senna. Penso que aqui os roteiristas acabam caindo na armadilha de muitas biografias, que viram um compilado de momentos de Wikipedia que podem ser facilmente encontrados em vídeos de Youtube, do que verdadeiramente criar uma história com intenções autorais e narrativas.

Nesse sentido, vou na contramão de muitas pessoas que assistiram a série e estão reclamando de não termos visto mais de Nelson Piquet, Michael Schumacher, Rubens Barrichello e, claro, Adriane Galisteu (quanto exagero do público em relação a isso, viu…), assim como outros momentos icônicos de Senna. Para mim, o problema é exatamente o contrário: falta foco narrativo. Para usar dois exemplos do subgênero que já citei na crítica, Rush – No Limite da Emoção foca na rivalidade de Niki Lauda e James Hunt, enquanto Ford vs Ferrari foca na empreitada que dá título ao longa. Aqui em Senna, mesmo sendo uma minissérie, falta uma linha narrativa central que não seja passear por eventos da vida do personagem, principalmente quando a obra navega muito mal por seus relacionamentos românticos, sejam as partes melodramáticas com Lílian de Vasconcellos (Alice Wegmann) ou Xuxa (Pâmela Tomé), seja a participação relâmpago de Adriane Galisteu (Julia Foti), que para além da comoção do público, soa muito ruim dentro da narrativa pela forma avulsa que acontece e que não é desenvolvida.

Esses problemas talvez sejam consequência da minha maior crítica à produção: a maneira como a minissérie é milimetricamente pensada para enaltecer Senna, sem mostrar seus defeitos, sem apresentar um personagem mais complexo, que fica o tempo todo aumentando seu mito, recriando suas lendas nacionais e alimentando sua força no imaginário coletivo brasileiro. Essa veia tendenciosa da família Senna, que tem participação direta na criação da minissérie, é percebida o tempo todo à medida que, como já falei, a obra se torna uma celebração dos hits do personagem, além da maneira como o roteiro dá mais atenção para personagens queridos para a família, como Galvão Bueno (Gabriel Louchard, muito carismático), a Xuxa e a própria Vivianne Senna (Camila Márdila), e menos para quem eles têm um relacionamento público restrito e polêmico, como Nelson Piquet e Adriane Galisteu. A minissérie chega a forçar a barra algumas vezes, como nas diversas montagens de pessoas de periferia comemorando as vitórias do piloto. Não estou falando que Senna não foi esse exemplo, porque ele efetivamente é um herói nacional e alguém para celebrarmos, que transcendeu o esporte e se tornou eterno, mas a minissérie poderia lidar melhor com isso sem cair num clichê constante de apenas elogios.

Ainda assim, é inegável que a minissérie de Ayrton Senna é uma belíssima carta de amor para um dos maiores ícones e personagens da história do Brasil. Uma verdadeira comemoração coletiva do piloto, a produção vem para relembrar e comover diferentes gerações sobre a sua jornada tão lendária, tão inacreditável e cheia de momentos espetaculares que são dignos de uma adaptação audiovisual dessa qualidade técnica. Reviver alguns desses feitos, principalmente com quem pôde vê-los ao vivo – vi a série com meus pais -, é um presente da Netflix. Mesmo com os diversos problemas narrativos que não deixam a biografia alçar um nível de excelência, é impossível não torcer, não se emocionar e não comemorar todas as suas vitórias, principalmente quando aquela música toca e quando ele levanta a nossa bela bandeira.

Senna | Brasil, 29 de novembro de 2024
Showrunner: Vicente Amorim
Direção: Vicente Amorim, Júlia Rezende
Roteiro: Álvaro Campos, Gustavo Bragança, Rafael Spínola, Thais Falcão, Álvaro Mamute
Elenco: Gabriel Leone, Camila Márdila, Susana Ribeiro, Marco Ricca, Nicolas Cruz, Alice Wegmann, Pâmela Tomé, Julia Foti, Christian Malheiros, Kaya Scodelario, Gabriel Louchard, Leon Ockenden, Joe Hurst, Arnaud Viard, Rob Compton, Nahuel Monasterio, James Marlowe, Charlie Hamblett, Daniel Crossley, Tom McKay, Richard Clothier, Matt Mella, Johannes Heinrichs, Hugo Bonemer, Keisuke Hoashi, Patrick Kennedy, Felix Mayr, Gastón Frías, Steven Mackintosh, Tom Mannion, Felipe Prioli, João Maestri, Lucca Messer
Duração: 6 episódios de aproximadamente 40-60 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais