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Crítica | Sempre aos Domingos

O perigo de julgar pelas aparências.

por Luiz Santiago
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Baseado no livro escrito por Bernard Eschassériaux, que também contribuiu para o roteiro do filme, Sempre aos Domingos (1962) é uma daquelas obras que normalmente gera sentimentos conflitantes no espectador, ao menos até que este entenda e se acostume com o que de fato está vendo na tela.

Dirigido por Serge Bourguignon, o filme começa com algumas cenas da Primeira Guerra da Indochina (1946 – 1954), na qual a França perdeu o domínio da região que hoje compreende Vietnã, Laos, Camboja e Guangzhouwan, um pequeno pedaço do Sudeste da China. Tendo visualizado o rosto de uma garota em desespero enquanto bombardeava uma aldeia, Pierre entrou em colapso psicológico e esse trauma de guerra o perseguiu por muito tempo depois de voltar para casa e, em tese, seguir com sua vida.

A primeira coisa que o espectador deve levar em consideração aqui é a condição mental ou espiritual do protagonista, interpretado com bastante zelo pelo ator alemão Hardy Krüger. Está em jogo um trauma de guerra que deixa sequelas na sociabilidade e comportamento de um ex-soldado, condição que reflete em outros aspectos de sua vida cotidiana, tais como a forma que ele vê as pessoas (e é visto por elas), o que esperam dele e, depois da primeira sequência da fita, os caminhos inesperados que provavelmente lhe trarão a cura.

Considerar esses aspectos de construção dramatúrgica é importante para que não haja entendimento errado ou maldoso do que o diretor e roteirista ou o próprio autor do livro nos quiseram transmitir. Em nenhuma instância estamos falando de uma relação lasciva por parte de Pierre e nem de Françoise (não falarei o verdadeiro nome dela). É válido citar, também, que a projeção da garota para o futuro e o comportamento enciumado de Pierre vão ao encontro do que um dos personagens da obra, Carlos, diz: trata-se de uma criança que encontrou outra. O complicado disso tudo é que esse tipo de relação, por mais bonita que seja, causa um certo… desconforto (não sei se esta é a palavra certa) quando vista pela primeira vez.

Ao longo dos anos eu percebi que muitos espectadores fazem uma leitura imediatamente negativa em relação aos que não captam a essência da belíssima relação de amizade entre Françoise e Pierre — um olhar psicanalítico pode pelo menos dar uma interpretação mais… sugestiva, caso queiram estender o problema. Porém, assim como é preciso contextualizar o lado do perturbado homem e da solitária criança, também se deve olhar para a “opinião pública” (as aspas é porque estou expandindo o povo de Ville-d’Avray, onde a história se passa, para a sociedade como um todo) que não necessariamente vai se relacionar bem com um homem de comportamento pouco sociável brincando com uma garota em um parque cada vez mais deserto entre o outono e o início do inverno. A forma como o roteiro nos é apresentado orienta o espectador para este tipo de problematização, quase como se fosse um exercício de construção imediata e simplista sobre o caso, seguido de uma desconstrução do que primeiro se imaginou e então da reconstrução de ideias e impressões.

Lançado no início da Nouvelle Vague, o filme não se enquadra no movimento, mas empresta muitas de suas ousadias de montagem e direção. O trabalho de Bourguignon, porém, está mais próximo da segunda fase e decadência do Realismo Poético Francês, com uma enorme variedade de condições representadas, o que nos transmite uma confortável sensação de passagem orgânica do tempo, ainda melhorada pela montagem de Léonide Azar. Contudo, a melhor dupla formada com Bourguignon aqui é a da direção de fotografia, assinada por Henri Decaë (Os Incompreendidos, O Sol por Testemunha).

Explorando a escuridão a favor do filme sempre que necessário e realizando enquadramentos geometricamente narrativos (reparem todas as cenas em que Françoise e Pierre estão dentro de algum cômodo. Note como Bourguignon dirige o trânsito dos personagens pelo espaço e como Decaë os ilumina — e ao ambiente — de modo a fortalecer o estado de espírito da dupla, às vezes falando muito mais que o roteiro, como se prova na sequência em que eles vão à casa abandonada do parque pela primeira vez; ou quando vão em um café vazio). Vale também citar a beleza com que a fotografia e a direção nos mostram o primeiro domingo de Françoise e Pierre (do jogo de luz e sombras na casa à espelhada superfície do lago) e o último encontro deles, que tem uma carga emocional enorme sobre o público.

Sempre aos Domingos é um filme triste, que retrata um dos comportamentos mais odiosos do homem, que é o de querer destruir tudo aquilo que não entende. Existem certos impasses do enredo, ao retratar o relacionamento entre os amigos de Pierre e sua noiva Madeleine — o relacionamento entre eles não é exatamente a melhor coisa do filme e não é necessariamente bem representado –, mas nada que seja tão grave a ponto de comprometer a sessão.

Vencendo uma disputa acirrada e de grande qualidade entre todos os concorrentes ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1963 (dentre eles, o brasileiro O Pagador de Promessas), Sempre aos Domingos se sagrou como a obra de maior destaque da filmografia de Serge Bourguignon, que nos entregou, através dela, um estudo sobre como a falta de diálogo, o não entendimento e a partida para a ação violenta podem ser nocivos aos sonhos, à felicidade e à vida de alguém.

Sempre aos Domingos (Les dimanches de Ville d’Avray) — França, Áustria, 1962
Direção: Serge Bourguignon
Roteiro: Serge Bourguignon, Antoine Tudal (baseado na obra de Bernard Eschassériaux)
Elenco: Hardy Krüger, Nicole Courcel, Patricia Gozzi, Daniel Ivernel, André Oumansky, Anne-Marie Coffinet, René Clermont, Malka Ribowska, Michel de Ré
Duração: 110 min.

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