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Crítica | Sem Rastros

por Gabriel Carvalho
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“Eu sei que você ficaria se você pudesse.”

Capitão Fantástico explorava uma vida selvagem, subversiva às normas de cotidiano que enclausuram nossa sociedade em padrões supostamente irretocáveis. A água encanada. A comida esquentada. A cama macia. Um apego à natureza pode ser mais próximo a uma liberdade nos termos da imaterialidade, no entanto, e quando não damos chances aos nossos filhos escolherem os caminhos a serem seguidos, sem apresentar outras alternativas? A educação possui papel restritivo, retomando uma arbitrariedade sobre como nossas crianças devem ser, ou de indução ao livre arbítrio, permitindo uma escolha própria, consciente? Sem Rastros caminha pela mesma premissa que Capitão Fantástico, porém, se desenvolve em uma vertente muito menos confusa acerca dos seus objetivos discursivos – o outro longa-metragem enrolava-se profundamente após a apresentação dos choques dos protagonistas contra o sistema. O caráter excêntrico é retirado, substituído por uma intimidade quase documental da rotina de uma pequena família, composta por pai e filha, que moram em um parque, sozinhos no intrínseco da natureza selvagem.

Os primeiros vinte minutos do filme exemplificam a abordagem mais pé no chão da diretora Debra Granik, adentrando o seu espectador na intimidade da dupla, como se alimentam, como dormem e como, enfim, vivem nessa natureza selvagem. Qualquer vertente mais lúdica, como, por exemplo, as cenas que mostravam os exacerbados – e irrealistas – conhecimentos possuídos pelas crianças de Capitão Fantástico, é transformada em uma intimista abordagem que, em comparação, se enaltece aqui pelas provas de conhecimentos gerais e pessoais aplicadas, após serem capturados por policiais. Diante da quebra com o viver anterior, interrompido por ser impossível, a escolha narrativa é interessante, pois nada é mais burocrático na nossa sociedade de avaliações comportamentais e intelectuais que uma prova. A escolha por essa vida subvertida também destrói qualquer pensamento mais utópico sobre como devemos encaminhar nossos cotidianos. O querer e o precisar são contrapostos em uma trajetória sobre identificação de pessoalidades, sobre o quanto nosso passado molda como é o nosso presente, o presente de quem.

Aquela vida não é o que o protagonista quer para si e para sua filha – como é o caso de Capitão Fantástico. Will, o pai, é retratado como um homem que precisa estar naquele ambiente, em decorrência de um passado destrutivo, que ocasionou marcas eternas. A cineasta explica, através de sugestões, como é o caso da resposta positiva da garota à pergunta sobre seu pai ter servido militarmente, o que está em jogo naquele relacionamento e nos respectivos comportamentos, sem precisar expor abruptamente, verborragicamente, as questões discutidas no seu longa-metragem. O intérprete do homem buscando a margem da sociedade, Ben Foster, com sua interpretação contida, assegura o público de seu descontentamento dentro de casas comuns, sob tetos de madeira e regras ordinárias. O olhar pela janela, pela conclusão do filme, nos prontifica da impossibilidade do personagem em permanecer naquele estado, acordado a pensamentos que seriam compartilhados com os do seu eu anterior à guerra. Um homem em combate, vivendo os horrores mais inimagináveis, sofre para retornar ao mundano sem consequências.

A resistência a uma rotina costumeira, sempre buscando a fuga das condições procuradas por terceiros, é interessante ao roteiro, mesmo que acabe significando certa redundância e estagnação narrativa. Uma obra paciente, Sem Rastros não é muito dinâmica, característica que está de acordo, porém, com a observação da cineasta sobre o seu projeto cinematográfico, mais intimista, menos emocionalmente manipulativo, embasando-se sobre uma carga de realismo. A proposta, entretanto, sobre essa humanidade branda que carrega o sufocante mórbido mentalmente, poderia estar alinhada com momentos mostrando, mais claramente, o quanto a garota poderia gostar de uma vida consideravelmente “ordinária”, por ser justamente uma pessoa com capacidade de experimentar coisas que seu pai não mais pode, em vista do seu passado. A impossibilidade não é a da vida no selvagem, mas a da vida distante dele. O desinteresse em contemplar a ambientação imerge essa rejeição a uma vida higiênica. Um protagonista que também não se sente em casa na natureza, mas o mais longe possível de um colapso mental.

Uma escolha, contudo, que não pode ser arbitrária às pessoas a sua volta. A menina, interpretada suavemente por Thomasin McKenzie, ainda não foi destruída pelo mundo, pela guerra. “Eu sei que você ficaria se você pudesse”, comenta a jovem. Os seus rastros não a revelam nada, porque não há rastros, interação social. Já os rastros do seu pai revelam pesares antigo. O estresse pós-traumático é uma poderosa força presente no longa-metragem. A cineasta, novamente, identifica muitos olhares da menina sugestivamente, como a despedida a meros cavalos de plástico, aparentemente banais, mas que a garota mostra estar chateada em deixar para trás. A jornada, portanto, identifica a necessidade de uma separação pungente. A adolescência necessariamente questionará o seu pertencimento, se a algo pertence. Às vezes, devemos permitir nossas crianças trilharem seus próximos passos por si mesmas, deixando rastros ou caminhando sem rastros, seja como optar por viver. Uma geração que não precisa ser estragada pela já estragada geração passada. Sem Rastros é uma belíssima história de amor – e sacrifício – entre pai e filha.

Sem Rastros (Leave No Trace) – EUA, 2018
Diretor: Debra Granik
Roteiro: Debra Granik, Anne Rosellini
Elenco: Thomasin McKenzie, Ben Foster, Jeff Kober, Dale Dickey, Dana Millican, David Pittman, Bob Werfelman, Isaiah Stone, Michael J. Prosser, Derek John Drescher, Susan Chernik
Duração: 110 min.

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