Três anos depois da comédia romântica Green Card: Passaporte para o Amor, possivelmente seu filme menos característico, Peter Weir retorna para a pegada mais mística e espiritual que marcou o começo de sua carreira em Piquenique na Montanha Misteriosa e A Última Onda, com Sem Medo de Viver, drama protagonizado por Jeff Bridges que entrega o que até hoje reputo ser uma de suas mais complexas, interessantes e melhores interpretações. Com roteiro de Rafael Yglesias a partir de seu próprio romance homônimo que escreveu inspirado no acidente aéreo com o voo comercial United 232 que, em 19 de julho de 1989, sofreu um acidente em um milharal de Iowa matando 112 passageiros, com 184 tendo sobrevivido, 13 deles sem ferimento algum, a obra é uma jornada sobre dor, trauma e redescoberta da vida como poucas por aí.
O filme, porém, não é sobre o acidente em si, que foi reproduzido quase que integralmente a ponto de aviões sobrevoando o set a céu aberto terem informado sobre ele como se fosse real, mas sim sobre as consequências para Max Klein (Bridges) que emerge do milharal depois do acidente nos segundos iniciais do longa com um semblante pacífico, calmo, quase transcendental, dando a mão a um menino e segurando um bebê no colo que ele não demora a entregar para sua mãe. A figura de Klein em meio à tragédia transmite imediatamente estranheza a partir do contraste, com a destruição e a dor ao redor conflitando com um homem apenas um pouco sujo que, sem falar muito, pega um táxi ali mesmo e hospeda-se no hotel mais próximo, depois partindo, com um carro alugado, para uma viagem que ele mesmo descreve com sendo “para seu passado”, em que ele visita uma colega de escola que não via há 20 anos e com quem toma café da manhã em um diner comendo morangos, fruta a que ele sempre fora alérgico. Trata-se de um dos começos de filme mais marcantes e hipnotizantes que tive o prazer de assistir no audiovisual, com Bridges imediatamente construindo um personagem etéreo e fascinante que as lentes de Weir capturam com curiosidade, doçura e tranquilidade, criando uma mistura de messianismo com distanciamento da humanidade que chega a ser difícil de explicar.
O que de melhor posso fazer é uma racionalização reducionista. Depois do acidente, Klein parece ter adentrado um outro plano de existência, um que altera profundamente sua personalidade, tornando-o destemido de um lado e afastado de sua vida anterior de outro, como se tudo o que importasse estivesse a frente e não atrás dele a ponto de a única conexão real que ele é capaz de estabelecer é com Carla Rodrigo (Rosie Pérez, que concorreu ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel), outra vítima do mesmo acidente que perdera seu filho pequeno nele. Os dois são apresentados pelo Dr. Bill Perlman (John Turturro), psiquiatra da companhia aérea, com o objetivo de fazer com que eles se ajudem, o que efetivamente acaba acontecendo, mas não exatamente da maneira que se espera, para consternação e confusão tanto de Laura (Isabella Rossellini), esposa do protagonista, quanto de Manny (Benicio del Toro), marido de Carla.
A grande verdade é que o título original, cuja tradução é Destemido, assim como o título em português, são enganosos ou, pelo menos, parcialmente enganosos, já que o filme é eminentemente um estudo sobre a dor da perda, sobre o trauma profundo e Max Klein, mesmo não parecendo superficialmente ter sido afetado negativamente pelo ocorrido, inclusive sendo laureado como herói pelas vidas que salvou e ganhando o apelido de Bom Samaritano, revela-se como um homem que sim, para todos os efeitos práticos, morreu no acidente ou, talvez mais corretamente, parou de viver. Ele mesmo não se reconhece mais, não reconhece sua família e só estabelece rapport com alguém com quem compartilha o trauma, com todos os demais personagens que por vezes têm suas presenças exacerbadas demais, especialmente a do advogado Steven Brillstein (Tom Hulce que nunca realmente deixou de ser Amadeus), não sendo mais do que detalhes em sua nova vida. Mas é importante notar que seu destemor não vem de algo sobrenatural, mas sim de sua consciência de que nada pode afetar alguém que já morreu, que está quase que literalmente acima desse medo primal de que todos partilhamos em maior ou menor grau e, nessa condição, está também acima do amor, acima de temer pelo próximo. Se Carla chora e desespera-se pela perda do filho, algo muito mais facilmente compreensível, Max sorri, gargalha e vive por momentos como esse da imagem que usei para ilustrar a crítica em que ele está na vertiginosa beirada de um prédio.
No entanto, o pedido silencioso de socorro de Max Klein – que o espectador demora a entender que é isso que ele está fazendo – está presente em cada segundo de projeção e é um dos mais belos estudos de personagem da Sétima Arte, com Jeff Bridges realmente capturando a alma de alguém profundamente traumatizado que desfez as conexões com o mundo em que vivia, mas que tenta desesperadamente mostrar que ainda está ali, em algum lugar, aguardando resgate que pode nunca chegar. Com Sem Medo de Viver, Peter Weir mostra justamente que a vida não é algo para ser vivido sem medo e, portanto, sem amor, mas sim abraçando e reverenciando esse temor e esse amor que são os elementos que revelam seu real valor.
Sem Medo de Viver (Fearless – EUA, 1993)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Rafael Yglesias (baseado em seu próprio romance)
Elenco: Jeff Bridges, Isabella Rossellini, Rosie Perez, Tom Hulce, John Turturro, Benicio del Toro, Deirdre O’Connell, John de Lancie, Robin Pearson Rose, Debra Monk, Kathryn Rossetter, Rance Howard, Anne Kerry Ford, William Newman, Kevin Brophy
Duração: 122 min.