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Crítica | Sem Chão

Memórias trágicas.

por Kevin Rick
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Favorito ao Oscar de Melhor Documentário, Sem Chão (No Other Land) é um filme que traz um olhar diferente para o conflito entre Israel e Palestina. O projeto criado pelos cineastas palestinos Basel Adra e Hamdan Ballal com os colegas e jornalistas israelenses Yuval Abraham e Rachel Szor, oferece uma perspectiva pessoal e diária do que efetivamente ocorre com o deslocamento e a desapropriação territorial dos palestinos, retratando a destruição sistemática de uma comunidade da Cisjordânia cuja origens remontam ao século 19. Sempre que um debate sobre o conflito surge à tona, parece que a discussão segue o mesmo tom, com palestinos sendo colocados na caixinha do terrorismo – porque o preconceituoso adora generalizar – e o escudo do antissemitismo sendo levantado para proteger discursos de ódio que respingam interesses políticos, enquanto os mais lúcidos continuam batendo na tecla da solução de dois estados, que obviamente é mais complexa na prática do que na teoria. A verdade é que está cansativo ouvir sempre pessoas de fora apontando os dedos para falarem besteiras ou oferecerem saídas mágicas, sejam os extremistas, sejam os ativistas do twitter, salvando o mundo uma hashtag de cada vez.

Não estou, de forma alguma, dizendo que o conflito israelo-palestino não deve ser abordado, discutido, pensado e refletido – muito pelo contrário, este documentário quer justamente abrir os ângulos dessa discussão, utilizando o canal de maior escala e abrangência do cinema -, mas é interessante assistir algo como No Other Land, que mostra o que é viver dentro dessa guerra; sem um olhar de exploração desse sofrimento, sem uma tendência de apelação emocional e sem artimanhas políticas para deturpar o seu conteúdo. O material aqui é autêntico, cru, angustiante e parcial – como deve ser – em prol da Palestina, expondo a trajetória e a batalha de habitantes que há décadas sofrem com a expulsão e a demolição de suas casas através de manobras militares de Israel – todas sempre protegidas pela mídia, seja na balela de Guerra Santa ou na desculpa de proteção militar. Vamos dar nome aos bois, porque o que acompanhamos aqui é uma violação dos direito humanos, discriminação institucional e violência genocida.

Isso tudo fica bem exposto e bem trabalhado no documentário sem a necessidade de didatismo ou explicações verborrágicas, até porque tudo abordado aqui já foi historicamente estudado, examinado, aprofundado e investigado. A produção não subestima a inteligência do espectador ao mesmo passo que não desvia suas lentes da realidade agressiva do local. Ainda assim, o grupo de cineastas analisa e é sagaz em críticas pontuais em torno dos temas que normalmente circulam as discussões do conflito, como na forma que ressalta a futilidade da vários jornalistas que foram na comunidade ao longo dos anos, mas sem nenhum real efeito (voltando ao tópico de exploração da guerra); na maneira que expõem que as raízes da comunidade datam desde o final do século 19 e que os mesmos estão sendo destituídos de suas casas sem nenhuma justificativa plausível; e principalmente no tratamento preconceituoso, indigno e violento de Israel em direção a famílias sem defesa. Não diria que chega a ser um material de jornalismo investigativo, mas definitivamente tem contornos inteligentes, que são bem estruturados dentro da narrativa que mostra o dia-a-dia da comunidade, com muitos desses questionamentos sendo colocados por habitantes locais, às vezes até de maneira despretensiosa, como em uma sequência aterrorizante em que os membros da comunidade começam a brincar e rir da possibilidade de Basel Adra ser preso por militares israelitas.

No entanto, o destaque de Sem Chão (No Other Land) está no sentimento de resiliência que é passado pela produção. A câmera é utilizada como uma arma de demonstração da verdade, de evidenciação das diversas atrocidades que acontecem, de um grito por mudança e principalmente de conservação, mostrando que essa é a comunidade deles, que essa é a terra deles e que eles estão resistindo. É muito, muito frustrante acompanhar as mesmas tragédias se repetindo por um período de mais de 20 anos coberto pelo material do documentário, o que inclusive deixa a produção exaustiva de assistir, por vezes até soando redundante (apesar de não ser), mas penso que a essência do filme jaz nessa repetição de injustiça e na triste característica cíclica que a obra ganha. O filme é autoconsciente disso, problematizando o sentimento de uma “luta sem fim” por trás do esgotamento emocional de Basel Adra, sempre em contraste com o privilégio de seus colegas israelitas. O sabor final do filme é agridoce; de que eles continuarão resistindo, mas talvez sem nenhum resultado além de memórias trágicas. Em determinado momento do filme, Adra cita que Israel esqueceu seu próprio sofrimento – referenciando o Holocausto – e impõe a mesma desumanidade aos palestinos, nos deixando refletir por alguns minutos. Infelizmente, é mais fácil propagar o ódio do que a empatia.

Sem Chão (No Other Land) — Palestina, Noruega, 2024
Direção: Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham, Rachel Szor
Roteiro: Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham, Rachel Szor
Duração: 95 min.

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