“O poder feminino está em alta”, afirma o discurso da mídia publicitária. Mas, afinal, será que as discussões acerca das diferenças entre os gêneros estão, de fato, calcadas em exemplos práticos do cotidiano ou muito do que se fala encontra-se apenas no plano das ideias? Com base na série em questão, Selva de Batom, bem como nos produtos do mesmo quilate lançados ao longo dos últimos anos, prefiro ficar com a segunda opção: fala-se muito de liberdade e o painel de relações não é o mesmo do passado, mas há muito, muito, mas muito para mudar nas configurações do feminino em nosso cotidiano.
Selva de Batom pode não ser autêntica, agradável e dinâmica como a sua “irmã” mais velha, a fabulosa Sex and The City, mas pelo menos consegue discutir com graça alguns assuntos que nunca se esgotam, tais como as relações de poder no cotidiano e no ambiente de trabalho, a moda como construção da identidade, a constituição da família contemporânea, os prazeres da vida urbana engendrada pelo consumismo, dentre outros assuntos.
Criada por DeAnn Heline e Eileen Heisler, a série durou duas temporadas, com episódios de em média 45 minutos. Com produção assinada pelo canal NBC, baseou-se no livro homônimo, de Candace Bushnell, autora de Sex and The City e os Diários de Carrie. Apostando numa linha narrativa que marchava em direção ao cotidiano de três amigas bem sucedidas e os altos e baixos relacionados à suas escolhas pessoais e profissionais, a série nos coloca diante de situações femininas e seus impasses, instabilidades e questionamentos.
O foco central é o trio Wendy (Brooke Shields), Nico (Kim Raver) e Victory (Lindsay Price). Wendy é a presidente da Parador Pictures, uma produtora de cinema que precisa lidar diariamente com atores como Leonardo DiCaprio e Russel Crowe. Luta constantemente para balancear a carreira e a família. Nem sempre é bem sucedida, principalmente na relação com a sua filha adolescente, uma menina que afirma ser a sua mãe uma felizarda, pois ela é “a única da sala de aula que ainda não transou”. Wendy ainda precisa lidar com o descontrole que a carreira de produtora provoca em sua família, principalmente depois que descobre que “só fazia café para os filhos para ver o seu reflexo na torradeira”, afirmação de uma babá antiga dos seus filhos, mulher agenciada por outro desafeto de Wendy, ambas decididas a publicar relatos sobre a vida íntima da executiva.
Nico é a editora-chefe da Bonfire, uma revista de importante circulação em Nova York. É eleita numa posição privilegiada ao topo da lista das 50 mulheres mais poderosas da cidade, sendo a mais racional do trio. Almeja o cargo de diretora executiva, o que lhe faz suplicar constantemente que “não precisa de mais currículos para avaliar, mas de um dia com mais três horas”. Segundo Nico, “para as mulheres é preciso trabalho duro associado ao talento, além da necessidade de se reinventar”. Em constante batalha com os colegas de trabalho, ela precisa driblar os preconceitos dos homens que a acham incapazes de exercer a sua função. Segura e emocionalmente estável, difere-se de Victory, a estilista que já começa a série dando ataques histéricos ao ler uma crítica negativa aos últimos itens da sua recente coleção. Ela tem noção que ser mulher no século XXI é diferente do que viveram as heroínas românticas do século XIX, mas atualmente há a agenda movimentada, a carreira como substituição do amor ausente, entretanto, ser solteira torna-se uma batalha semelhante a uma guerra. Ser salva por um “príncipe encantado” é um dos seus propósitos.
No painel dos personagens coadjuvantes, destacam-se: o dedicado Shane (Paul Blacthorne), um homem tranquilo e bom pai, mas ressentido com o sucesso da sua esposa. “Eu não quero fazer filhos, eu quero fazer filmes”, é o que escuta ao discutir com Wendy, após alegar que desejar acrescentar um terceiro filho ao casamento. Joe (Andrew McCarthy) é um bilionário que acredita deter o poder de dominar a tudo e a todos com o seu dinheiro. Namorado da temperamental Victory, envolvido numa relação que vai ser alvo de términos e reatos ao longo das duas temporadas, com um final feliz, óbvio, como já é de se esperar desde o primeiro episódio. Não há “devir” nem surpresa, diferente do sedutor e plasticamente atraente Kirby (Robert Buckley), caso tórrido de Nico. “Você já estava no colegial quando ele nasceu”, aponta uma das amigas, numa discussão sobre a infidelidade da editora da Bonfire, casada com o professor universitário Charles (Christopher Cousino), um homem maduro e distante da sua esposa. “Eu não me sinto sozinha desde que eu era casada”, devolve Nico como resposta, após reafirmar a infelicidade em seu casamento, principalmente depois que descobre não ser a “ovelha desgarrada” da relação, haja vista que o seu esposo também mantém um relacionamento com uma pessoa mais jovem, ou seja, uma das suas alunas, personagem que aparecerá grávida no meio das confusões narrativas da segunda temporada.
Se os homens do núcleo sentimental são alvo de desafios para as três protagonistas, no que diz respeito ao eixo profissional, o panorama é ainda mais complicado. “Uma mulher não dá chilique ao querer ver as coisas certas”, reclama Nico, numa discussão com o seu colega de trabalho e inimigo nº 01, Mike (David Alan Basche). A experiente profissional alega que se os homens pegam pesado, são chamados de durões, diferente das mulheres, consideradas temperamentais e histéricas ao agir com firmeza no ambiente de trabalho. Com Wendy, as coisas ficam ainda mais complicadas. É demitida por Hector (Julian Sands), o seu chefe, após aprovar um orçamento indevido que coloca o estúdio que preside numa complicada situação. “Quer que eu me desculpe por ser bem sucedida?”, alfineta numa discussão com seu marido Shane na primeira temporada, questão que será revista depois que ele começa a exercer a função considerada do homem da casa, na segunda temporada, ou seja, manter e gerenciar financeiramente a família.
Humor é o tempero principal de alguns diálogos do eixo que gravita em torno de Wendy e o seu trabalho como produtora de cinema. “Nenhuma festa pode custar mais que o filme”, diz um dos colegas de trabalho. “Eu não me importo, depois eu alugo”, desfere uma atriz bajulada e cheia de manias, negando-se a estar presente no lançamento do seu próprio filme. “Presa por dirigir embriagada a 10 km/h”, lê essa mesma atriz nos jornais depois de um escândalo no evento de lançamento que havia prometido não ir. “Os críticos de cinema estarão todos aqui”, justifica Wendy para um dos colegas que questiona o orçamento e o sucesso do filme produzido. “Alguém que consiga uma expressão naquela cara de plástico cheia de botox”, esbraveja um produtor enfurecido para Wendy.
Estas são algumas passagens que refletem com bastante sagacidade o mundo das afetividades de uma (grande) fatia da produção cinematográfica de cunho hollywoodiano: as “divas” e os seus escândalos, a briga pelo orçamento de uma realização, a relação com a recepção dos críticos e do público, além do painel de artistas que precisam tentar driblar a ação do tempo, através de inserções estéticas, para conseguir manter os seus empregos, bem como o embate histórico entre produtores e diretores, relação amarga que em muitos casos nos faz colecionar nossos filmes e as suas versões “do diretor”, “sem cortes”, etc.
As relações familiares também fazem parte do eixo de questões contextuais que precisam ser problematizadas. “Elas são a minha família”, diz uma das personagens durante um diálogo. Assim como em várias séries e filmes estadunidenses, visitar os pais, irmãos e demais familiares parece uma atividade hercúlea, um fardo que nenhum personagem parece estar interessado em carregar. Uma visita aos pais ou a chegada destes surge como uma espécie de tragédia anunciada, algo aterrorizante e temível, que deve ser mantido a devida distância. Nico é o foco desta questão em Selva de Batom. A relação com o seu pai é problemática por conta do seu sucesso e da falta de apoio ao irmão envolvido constantemente com ações criminosas. O tempo com as afetações envolvendo a família é gerido entre o consumo de roupas e joias valiosas, jantares cheios de estilo e desfiles de moda.
Diante do exposto, percebemos que a narrativa de Selva de Batom faz jus ao gênero chick lit: é leve, divertida e charmosa, adornada por mulheres independentes, cultas e audaciosas. Com os primeiros passos (o boom) no final dos anos 1990, com O Diário de Bridget Jones, de Helen Fielding, esse tipo de literatura tem crescido exponencialmente e ganhado ramificações, como a mom lit (para mães), glamour lit (as de carreira glamourosa), fantasy lit (as heroínas com super poderes), a bigger lit (para as mais cheinhas), dentre outras.
À guisa de conclusão, é preciso se perguntar: o poder feminino está mesmo em alta? Se depender da análise de Selva de Batom, a resposta é relativa. As mulheres conseguem mais espaço que antes, mas ainda é preciso batalhar muito, principalmente nos aspectos que envolvem o mercado de trabalho. Sete anos após a sua estreia, podemos utilizar o relatório intitulado Progresso das Mulheres no Mundo 2015-2016: transformar as economias para realizar os direitos, como subsídio para a resposta. Segundo os dados da pesquisa, em média, os salários das mulheres estão 24% inferiores aos dos homens na execução de funções semelhantes.Fica a reflexão.
Selva de Batom (Lipstick Jungle) – A Série Completa (EUA, 2008-2009)
Principais diretores: Timothy Busfield, Tricia Brock, Michael Fields, Arlene Sanford e Melanie Meyron.
Roteiro: Candace Bushnell.
Elenco: Brooke Shields, Kim Raver, Lindsay Price, Paul Blacthorne, Andrew McCarthy, Robert Buckley, Christopher Cousino.
Duração: 45 min (cada episódio).