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Crítica | Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello

Por meio de sua composição teatral sagaz, autor italiano versa sobre a fragmentação da identidade humana.

por Leonardo Campos
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Um dos recursos mais fascinantes da ficção metalinguística, em meu ponto de vista, é a quebra da quarta parede. É um caminho que desafia a ideia de uma barreira invisível entre o mundo ficcional e o público, permitindo que personagens reconheçam a sua própria natureza fictícia ou interajam diretamente com o público ou com elementos externos à obra. É isso que faz Brás Cubas ser ainda mais interessante do que já é na literatura machadiana (e brasileira de modo geral), ou que torna os primeiros episódios de Sex and The City, na televisão, uma narrativa seriada que chegava para desafiar formatos estabelecidos. Em linhas gerais, a quebra da quarta parede rompe com a convenção tradicional de que os personagens fictícios devem permanecer alheios à sua condição de criações artísticas. Quando um personagem quebra essa barreira e se direciona ao público, seja através de um olhar direto para a câmera, um comentário direto ou uma interação explícita, ocorre uma interrupção na suspensão da descrença do espectador. Este momento de consciência metalinguística cria uma dinâmica única que desafia as fronteiras entre realidade e ficção. Hamlet, por exemplo, é ainda mais impactante ao utilizar esse recurso, personagem de William Shakespeare que nos convida a participar de seus dilemas internos por meio desse rompimento de barreira, como acontece com a peça que é alvo dessa análise, Seis Personagens à Procura de Um Autor, obra-prima do dramaturgo italiano Luigi Pirandello.

Escrita em 1921, a peça que reflete sobre identidade, realidade e a natureza da arte começa com uma companhia de teatro ensaiando outra peça no palco. Durante os ensaios, seis personagens do título interrompem a situação, afirmando que são personagens inacabados cuja história foi abandonada por seu autor. Eles imploram à trupe que representem sua história e tragam suas emoções e conflitos à vida. O principal conflito gira em torno das tentativas dos personagens de convencer a companhia de teatro a contar suas histórias trágicas e complexas de maneira justa. A realidade fragmentada dos personagens entra em contraste com a tentativa dos atores de compreender e representar essa realidade, em um texto que reflete sobre a natureza da verdade e da ficção, revelando as falhas e a beleza na tentativa de representar a essência da vida através da arte. Situada no âmbito do que chamamos de metaficção, o enredo da peça é uma obra dentro de outra obra, com personagens esféricos que questionam a natureza de sua própria existência e identidade, abrindo um debate filosófico denso sobre o que constitui a realidade. Ao explorar o conflito entre as emoções reais dos personagens e suas respectivas representações dramatúrgicas, Seis Personagens à Procura de um Autor é uma peça que pode ser interpretada como uma narrativa que alegoriza a busca por sentido e ordem em um universo caótico.

Em sua estrutura, temos 176 páginas de muita ironia, traduzidas de maneira eficiente por Sergio Flaksman em uma das versões em língua portuguesa. Observamos cada uma das figuras ficcionais desenvolvendo as suas características em cena. O Pai é um homem que busca expiação e quer que sua história seja contada para dar sentido à sua existência. A Mãe é uma figura sofredora, marcada por tristeza e submissão. A Enteada, uma jovem rebelde e vingativa, com um passado sombrio com o Pai, possui a mesma vibração energética do Filho, um personagem distante e crítico que rejeita constantemente todo o drama ao seu redor. Como personagens menores que contribuem para a tragédia familiar, temos o Jovem e a Criancinha. Ao passo que a história se desenvolve, acompanhamos o potencial do texto em sua linha tênue entre realidade e ficção, explorando como os personagens, apesar de serem fictícios, têm suas próprias verdades e realidades. A peça também questiona a relação entre criador e criação, refletindo sobre o controle que o autor tem sobre seus personagens e como eles podem adquirir vida própria. Os personagens buscam por um autor para dar sentido às suas vidas, numa obra que se debruça sobre o sentido e a natureza do teatro, discutindo os papéis de atores, diretores, personagens e autores na criação de uma peça. É um texto forte, com um mote que aborda o incesto, a infidelidade e a tragédia familiar, numa curiosa jornada que levanta questões sobre moralidade e autonomia ao mostrar personagens fictícios com suas próprias crenças, intenções e desejos, que muitas vezes colidem com os dos atores ou do autor.

Sobre o autor, caro leitor, ao adentrar nas convidativas páginas do texto de Seis Personagens à Procura de Um Autor, contemplamos os motivos que fizeram do dramaturgo um nome memorável na história da dramaturgia. Nascido na Sicília em 1867, Pirandello emergiu como um dos mais influentes dramaturgos do século XX. Os motivos: a sua escrita desafiava as convenções teatrais tradicionais e explorava questões fundamentais sobre identidade, realidade e percepção. Seu legado não se limita apenas ao seu trabalho como escritor, mas também pela forma como ele influenciou gerações de artistas e espectadores, moldando a própria natureza do teatro moderno, inclusive muitos brasileiros. Com a peça em questão por aqui, o autor explorou a complexidade da natureza humana e questionou a própria essência da realidade. Ao ler cada passagem, percebemos que a sua abordagem inovadora, muitas vezes caracterizada pelo uso de narrativas não lineares e personagens multifacetados, não tinha como foco apenas polemizar com artifícios técnicos, mas desafiar as convenções da época, abrindo caminhos para uma nova forma de expressão artística que colocava em xeque as noções convencionais de identidade e verdade.

Em Seis Personagens à Procura de um Autor, ele tece uma história que tem como temática o teatro dentro do teatro, estratégia que ressoou em movimentos teatrais posteriores, como o Teatro do Absurdo e o Teatro Pós-Moderno. É possível perceber em sua escrita assertiva, a ênfase na natureza subjetiva da realidade e na multiplicidade de perspectivas moldou as discussões contemporâneas sobre a natureza da arte e a função do teatro como veículo de reflexão e questionamento, uma modalidade de arte milenar e ainda muito autêntica. Além do impacto direto em termos de forma e conteúdo, o legado de Pirandello é sentido igualmente em termos de sua contribuição para a compreensão da condição humana. Suas obras frequentemente exploram questões existenciais profundas, como a busca pela identidade, a fragmentação da personalidade e a natureza ilusória da realidade. A sua composição teatral é um ato de ousadia criativa, compromisso do autor com a inovação e também com os questionamentos acerca das estruturas tradicionais.

Ademais, de volta ao que trouxe na abertura sobre o recurso da quebra da quarta parede, temos que levar em consideração que essa estratégia narrativa não se limita apenas ao entretenimento, mas possui algumas no campo da estética e da filosofia. Ao desestabilizar as fronteiras entre o mundo fictício e o mundo real, essa técnica questiona a natureza da representação artística e sua capacidade de gerar significado e engajamento emocional. A interação direta entre personagens e espectadores desafia a passividade do público, convidando-o a participar ativamente da construção do significado da obra. Ao desafiar as convenções e expectativas do público, temos uma proposta de estimulação da criatividade, além da inovação artística. Quando bem desenvolvida, como é o caso de Pirandello, se torna uma suntuosa reflexão sobre os limites da ficção e da realidade, algo que pavimenta um caminho coeso entre o mundo imaginário e suas múltiplas possibilidades. Muito além de ser um artifício técnico, a quebra da quarta parede é uma maneira de explorar as fronteiras da linguagem, da representação e da experiência estética. Ao romper com as convenções tradicionais em seu texto, o italiano desafia o público e o leitor a enxergarem além da superfície da narrativa. Nesse caso, emblemático, é como mergulhar nas camadas mais profundas e complexas da experiência humana.

Com o texto, nós podemos interpretar que a experiência humana é muitas vezes fragmentada e dominada pela incompletude. Você, caro leitor, já conseguiu contar a sua história?

Seis Personagens à Procura De Um Autor (Sei Personaggi In Cerca D’Autore) — Itália, 1921
Autor: Luigi Pirandello
Tradução: Sergio Flaksman
Editora: Peixoto Neto
176 páginas

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