Home TVTemporadas Crítica | Scooby-Doo: Mistério S.A – A Série Completa

Crítica | Scooby-Doo: Mistério S.A – A Série Completa

por Iann Jeliel
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Scooby Doo Mistério S.A

“Vocês não sabem o que descobriram.” – Sr. E Scooby Doo Mistério S.A

“Descobrimos o quê?” – Daphne Scooby Doo Mistério S.A

“Uma verdade que deveria continuar escondida. A verdade por trás da maldição da Baia Cristal. O verdadeiro mistério acabou de começar!” – Sr. E Scooby Doo Mistério S.A

  • SPOILERS moderados. Leia, aqui, as críticas de todo nosso material de Scooby-Doo.

Scooby-Doo já flertou ao longo dos anos com diversos formatos, mas seu poder icônico sempre seguiu uma mesma lógica de conquista, envolta na simplicidade do imagético aliado ao carisma dos personagens, que capturavam os olhos infantis e adultos, apesar de seguir à risca uma mesma fórmula episódica para as resoluções de mistérios da semana. O desenho em si nunca utilizou seus mistérios para além desse valor de entretenimento mais geral, embora já tenha flertado antes, inclusive na sua última encarnação, Salsicha e Scooby Atrás das Pistas, com narrativas sequenciais em que os mistérios tornam os episódios interligados uns aos outros, construindo um universo próprio ao desenho, mas nunca fez isso em proporção relevante, pelo menos até sua décima primeira encarnação.

Surgida no início da década de 2010, que pode ser marcada como ápice da transformação televisiva e divisor de águas nas transformações de linguagem para os desenhos animados, Mistério S.A traz consigo o ápice da maturidade jovial da geração Z, abandonando um pouco da inocência característica da maioria das outras versões e adotando uma história mais densa, até mesmo complexa para um desenho animado, além de contínua como uma série de TV cinematográfica, na qual um episódio daria sequência a outro, sem que esse abandonasse a estrutura episódica característica de diferentes mistérios toda semana. A diferença é que todos eles de alguma forma se amarrariam em um grande mistério central diretamente envolvido numa construção de universo único à série, ou seja, era uma série com grande ambição, uma história de início, meios e fim, e que ainda pretendia reunir todas as melhores características de cada versão em um só lugar potencializadas pelas convenções narrativas modernas.

De fato, olhando especialmente para a primeira temporada, o efeito de união entre a preservação das principais características clássicas, sem o fator da inocência tão em xeque, e a modernidade retrô gera um envolvimento quase sobrenatural do público. É uma série completamente correspondente ao seu período, viciante, onde cada nova pista para o mistério central, cada nova descoberta do passado de seu universo, no caso, Baia Cristal, gera uma vontade quase incontrolável de ver o próximo episódio. Se não bastasse os cliffhangers, cada episódio em especial é uma evolução do caráter mais elaborativo visto em O Que Há de Novo Scooby-Doo, em que o roteiro constantemente brinca e manipula os principais suspeitos, o didatismo é diminuído para promover um teor participativo mais próximo, os vilões, além de possuírem planos mais coerentes e motivações mais sombrias, oferecem desafios às resoluções por reagirem à investigação a mudando para tornar mais difícil de serem pegos.

Enfim, basicamente tudo do caráter episódico tradicional de Scooby-Doo é tratado de modo mais aprofundado, incluindo aí no bolo os personagens. Só da história pertencer a um mesmo universo, e ser contínua, já traz uma sensação de progressão de desenvolvimento a eles, mas isso também é pensado no texto sob diferentes prismas. Existe o aspecto familiar em que cada um, em menor ou maior proporção, vivencia dramas com seus familiares, que porventura se interligam ao drama da turma enquanto grupo, que são desafiados às vezes em níveis que implodem conflitos internos, alavancados por tensões românticas. O quinteto está bem mais humano e falho, e os romances exploram bem as fragilidades emocionais de cada um. Velma e Salsicha como casal escondido levantam um lado possessivo de Velma que em determinado momento exige que Salsicha escolha entre ela e Scooby por ciúmes de atenção, além de mostrar um outro lado da covardia de Salsicha, incapaz de arranjar um ponto de equilíbrio nessa tensão em sua disputa.

Ao mesmo tempo, esse romance não vilaniza ninguém, pelo contrário, ele expõe um lado nunca explorado de Velma em seus problemas de autoconfiança com a aparência, além de crises de identidade de gênero. Faltou pouco para isso ser explorado um pouco além e entrado de fato em um outro romance bissexual com sua amiga Maria Cachorro-quente, que mais para frente se torna uma personagem relevante na história. Contudo, somente o implícito dessa dramática em toda a transição que passa com sua relação com Salsicha é algo pouquíssimo visto com tamanha densidade em desenhos animados. Aliás, vale dizer que nenhuma das séries de Scooby-Doo possui sequer algo próximo ao feito aqui com relação ao tratamento dos personagens secundários, que possuem seu próprio desenvolvimento específico mais do que apenas reaparições constantes, que de algum modo conversa com a história principal. Tanto que as evoluções de Salsicha e Scooby, as mais preservadas por ainda serem a referência do coração do grupo, são trabalhadas diretamente com espelhamentos a alguns desses secundários que possuem maior relevância, em especial, os grandes vilões da história, o Sr. E. e o Professor Péricles.

O mistério principal possui em seu cerne um aspecto geracional muito forte que vai se revelando conforme mais da história do universo vem sendo descoberta e preparando uma transição para o lado mais fantasioso. O grande guia dessa transição é a dramaturgia de Fred Jones, que possui de longe sua melhor versão até o momento. Mais do que um líder, Fred tem um teor quase heroico em sua jornada, baseada puramente em conflitos de uma abertura emocional. Apesar de a série possuir um senso ideológico conservador, algo exposto pelo próprio Fred em seu romance com Daphne que aqui volta a ser uma figura mais indefesa, quase como uma donzela em perigo, apaixonada e não correspondida pelo galã Fred que pode ter aberturas emocionais por ter que ser esse líder macho alfa, o grande poder do desenvolvimento dos dois passa por uma desconstrução dessa dependência emocional. Veja bem, se a grande piada em torno de Fred não é seu vício em armadilhas, isso não é para valorizar seu caráter resolvedor de problemas como homem, é também uma válvula de escape para ele não se deixar abrir nas emoções.

Daphne é quem vai tomar as atitudes da relação, e no tempo em que Fred não corresponde, ela vai se desapegando e se tornando mais independente, deixando Fred à mercê desse aprisionamento emocional que o engole, enquanto drama familiar com seu pai, e vai se tornando cada vez mais forte quando ele e o próprio pai vão se revelando como peças mais fundamentais no desenrolar do mistério. E a grande chave aqui está no modo como esse desenvolvimento é conduzido, Fred é assumidamente o galã tapado enquanto Daphne é assumidamente a rica mimadinha do grupo, e essa caricatura assumida dos estereótipos abre espaço para que seus desenvolvimentos sejam mais verdadeiros, além de trazer esses conflitos mais frontais que aumentam a química do casal e nos faz torcer mais por eles. Isso vale também para os outros personagens, Velma, Salsicha e Scooby,  na linha de estrutura que sempre preserva o aspecto retrô, ao mesmo tempo em que o moderniza por complexar suas características dentro de um aspecto temporal condizente com a história.

Lá para a segunda temporada, pode-se dizer que ela se transforma para um lado que até então Scooby-Doo nunca atingira um patamar qualitativo assertivo, que é a inserção de elementos fantasiosos que vão a fundo neles. Como é uma série grande, a maior de Scooby-Doo em termos de duração, houve espaço suficiente para trazer essa fantasia mais explícita em uma transição gradativa com a pouca possibilidade de racionalização dos desdobramentos cada vez mais complexos do mistério principal, fora o caráter espelhado dos personagens, que cada vez mais fortificavam uma noção de destino e transformavam o universo de Baia Cristal e todas as suas inserções referenciais a outras versões em uma mitologia que em determinado momento passa a transitar junto da lógica realista e dramaticamente densa do desenho. Tanto que nesta temporada são tomadas diversas liberdades imagéticas, tais como gags clássicas de distorção da realidade que só uma animação assumida possui, que eram tão pouco ou quase nada vistas na primeira, soando extremamente estranhas considerando que há pouco tempo houve um ápice emocional do desenvolvimento de todos os personagens enquanto dramaturgia.

O primeiro episódio desta segunda temporada é simbólico nesse sentido, porque talvez seja um dos episódios mais corajosos da história do desenho, colocando o grupo dividido para falhar no final contra um dos monstros mais ridículos de todo o desenho, um bebê que dirige um caminhão estranho que consegue destruir a cidade de Baia Cristal. Essa convergência de exageros mais característicos com uma crescente cada vez mais séria em ambições dramáticas coloca a fantasia mais assumida da segunda temporada em um território de risco para a suspensão da descrença, que dificilmente é correspondida em totalidade. Traz uma queda inegável da qualitativa dos mistérios individuais e deixa o principal mais exposto de digressões e didatismos às vezes não condizentes com a estrutura narrativa até então. Isso vai culminando numa reta final complicada, em que o último episódio é um grandioso balde de água fria.

Não é ruim, mas também parece pertencer a uma outra série, apesar de fechar quase tudo que essa se dispôs desde o início quando posicionou ambiciosamente e letalmente todas as características das demais versões, incluindo aí as mais fantasiosas. Fato é que com a substância apresentada anteriormente, esta é a investida mais suscetível de Scooby nesse lado místico. Tanto que, apesar de estranho, o final com direito a criatura superpoderosa versus a turma da Mistério S.A, convertida também em quase super-heróis pela história, é empolgante, tenso e um daqueles finais em aberto que deixam um vazio melancólico pelo fim da série, e ao mesmo tempo assustador por apresentar nova realidade que jamais poderíamos pensar que existiria num desenho de Scooby-Doo. No entanto, a sensação da ambição ter engolido a série é muito real, não num nível de de quis ser tudo e acabou não sendo nada, mas que poderia ter sido a melhor série de Scooby-Doo se escolhesse o seu melhor lado até o final.

Esse melhor lado que está na primeira temporada, pode-se dizer que ela é a uma das melhores coisas já feitas a esse personagem, um equilíbrio perfeito entre o mais elaborado, maduro e interconectado da geração Z e a diversão escapista mais simples e episódica da formatação clássica. Uma pena que a segunda temporada, apesar de valorizá-la bastante pelos riscos que toma, corra tantos que acabará prejudicando a série como um todo a dar um passo além, justamente por querer dar um passo maior que a própria perna, em especial, no final, que como dito, não é ruim, mas é inegavelmente decepcionante em algum nível, ou no mínimo divisivo de opiniões. Infelizmente, não vejo essa divisão a favorecendo em sua construção icônica, é uma série excelente, que será lembrada mais por estímulos da experiência do que por ser imageticamente ou narrativamente memorável, como seus maiores representantes.

Scooby-Doo: Mistério S.A (Scooby-Doo! Mystery Incorporated | EUA, 2010 – 2013)
Showrunner: Mitch Watson, Spike Brandt, Tony Cervone (Baseado na criação de Joe Ruby e Ken Speaks)
Diretores: Victor Cook, Curt Geda, Lauren Montgomery, Doug Murphy, Michael Goguen
Roteiristas: Joe Ruby, Ken Spears, Michael Ryan, Mitch Watson, Roger Eschbacher, Jed Elinoff, Scott Thomas, Benjamin Townsend, Mark Banker, Adam Beechen
Elenco (Dublagem Original): Frank Welker, Mindy Cohn, Grey Griffin, Matthew Lillard, Patrick Warburton, Lewis Black, Gary Cole, Vivica A. Fox, Udo Kier, Kate Higgins, Frances Conroy, Tia Carrere, Tim Matheson, Mitch Watson, Kath Soucie, Maurice LaMarche
Elenco (Dublagem Brasileira): Orlando Drummond, Mário Monjardim, Juraciara Diácovo, Nair Amorim, Peterson Adriano, Jorge Vasconcellos, Walmir Barbosa, Júlio Chaves, Reginaldo Primo, Mckeidy Lisita, Flávia Saddy, Fernanda Baronne
Duração: 2 temporada – 52 episódios – 26 episódios por temporada – 23 minutos cada episódio

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