Um remake da clássica minissérie sueca de Ingmar Bergman, Scenes from a Marriage, criada e dirigida por Hagai Levi, acompanha uma saga matrimonial em desmoronamento, protagonizada por Mira (Jessica Chastain) e Jonathan (Oscar Isaac), casados há dez anos, e aparentemente felizes. Dividida em 05 episódios com espaços temporais de meses ou anos, cada capítulo serve como uma pequena crônica que normalmente começa com uma altercação simples ou até uma situação terna entre o casal, que acaba sendo o estopim de uma discussão interminável, trazendo ressentimentos, detalhes e segredos guardados à tona, além de determinar o rumo de seu relacionamento por longos períodos de tempo.
Começando com uma entrevista por uma aluna de psicologia que pretende fazer uma tese sobre casais heterossexuais e monogâmicos, Scenes from a Marriage rapidamente transmite duas características que acompanham o público ao longo da obra: invasão de privacidade e uma sensação desconfortável. À medida que as perguntas da estudante ficam cada vez mais intrusivas, sentimos inicialmente uma intromissão na vida íntima do casal, o que consequentemente causa incômodo, tanto para a audiência quanto para os protagonistas. Ambas sensações servem a um propósito narrativo: desnudar a aparência superficialmente bela do matrimônio do casal.
O primeiro episódio é bastante sutil e metódico em revelar a sujeira por debaixo do tapete. Primeiro vemos isso nas reações adversas do casal às perguntas da estudante. Jonathan é sempre ágil e disposto a responder os questionamentos – até irritantemente interrompendo Mira -, como se o personagem precisasse reafirmar o estado positivo do casal, além de estar sempre viajando em explicações pseudo-filosóficas sobre a desnecessidade de paixão sexual em um casamento – ele soa mais inseguro que confiante. E Mira meio que acompanha as opiniões do marido, mas podemos ver nas ótimas expressões faciais de Chastain uma certa frustação; como se ela não concordasse com Jonathan, mas aceita uma posição suprimida no relacionamento por causa da rotina. O típico “está tudo bem”, sendo que claramente não está.
O design de produção da casa transmite muito bem essa falsa sensação de normalidade, com um ambiente milimetricamente organizado, luminoso e lindo, mas também frio; também dispondo de planos simétricos, enquanto Hagai Levi, auxiliado pelo cinematógrafo Andrij Parekh, acompanha os personagens quase sempre entre quatro paredes, em um aspecto observacional e claustrofóbico (tanto de ambientação, quanto simbolicamente do casamento infeliz). Também temos algumas sequências cotidianas como escovar os dentes ou deitar na cama, que dizem muito da relação do casal, pois vemos Jonathan bastante confortável e acostumado com a rotina, enquanto Mira está sempre à procura de um toque especial ou qualquer tipo de reação do marido. Até quando ela diz que está grávida, e eles começam a discutir aborto, o tom da conversa (e a resolução) sempre parte de uma passividade-agressiva de coisas não-ditas e sofrimento isolado.
É por isso que quando uma situação criada por Mira leva ao “fim” do casamento, é bastante fácil sentir repulsa e raiva da personagem, assim como uma pena mesclada com vergonha pela reação de Jonathan, mas todas as nuances e detalhes antes da DR impactam a discussão com o que não foi dito, anos de infelicidade e cicatrizes ocorridas em elipse que ficam implícitas. Não temos vilões ou vítimas, apenas seres humanos falhos e confusos. Se aproveitando disso, o roteiro da série parte de diálogos realistas totalmente viscerais; torturantes de assistir com uma jornada de emoções e sentimentos entre egoísmo, amor, vergonha, resignação, etc, com performances poderosas de Osca Isaac (sempre caminhando uma difícil interpretação de vários sentimentos com a personalidade estável e contida do personagem) e Jessica Chastain (basicamente o contrário de Isaac, tendo que estar sempre oscilando feições de acordo com o jeito explosivo e aparente de Mira).
O que se segue é um estudo mais próximo do preço da separação, do que necessariamente do casamento, sempre lidando com a consequência do afastamento nos personagens. Interessante como cada crônica lida com o encontro deles com uma certa familiaridade e tensão sexual, como se eles nunca realmente resolvem sua situação – elemento pessimista mantido até a última cena. Também é bacana como o cenário principal da obra vai ficando bagunçado e sujo, a iluminação fica escura e nossos personagens mais profanos para um padrão conservador – Jonathan agora fuma e Mira se veste mais sensual -, à medida que eles confrontam seus problemas com mais honestidade. Além disso, o texto de Levi consegue inserir interessantes debates de monogamia para nossa sociedade cada vez mais livre sexualmente, como também a intrigante dinâmica de poder invertida de gênero (Mira é a principal provedora financeira), que leva a alguns tópicos sexuais, hierárquicos e de masculinidade frágil do drama de Jonathan – em dado momento ele reclama que foi “domesticado”.
Tenho apenas duas ressalvas na minissérie. A primeira é em relação a como Levi vai se afastando de uma narrativa sutil, com os diálogos dos personagens cada vez mais expositivos e repetitivos, em que todo sentimento é falado, e pouco mostrado (como acontece na sessão com a estudante). Isso acaba deixando a obra um tantinho teatral e melodramática demais, fugindo da representação realista. E o segundo probleminha que tive ocorre na transição abrupta do penúltimo episódio para o finale, os únicos que senti uma lacuna faltando no progresso do arco do casal – eles vão de um desfecho horroroso para um reencontro pouco explicado em termos de motivação.
Mas são pormenores em uma das experiências mais emocionalmente viscerais e inconfortavelmente humanas por aí. Scenes from a Marriage é o tipo de obra que você quer desviar o olhar, dada a tamanha invasão de privacidade proporcionada por discussões tão próximas da realidade que o desconforto é palpável, mas não conseguimos parar de assistir um casal passando por uma espiral de sensações miseráveis – e esparsamente bonitas.
Scenes from a Marriage | EUA, 12 de setembro a 10 de outubro de 2021
Criação: Hagai Levi
Direção: Hagai Levi
Roteiro: Hagai Levi, Amy Herzog
Elenco: Oscar Isaac, Jessica Chastain, Nicole Beharie, Corey Stoll, Sunita Mani, Shirley Rumierk, Sophia Kopera, Anna Rust, Michael Aloni
Duração: 296 min. (cinco episódios)