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Crítica | São Paulo, Sociedade Anônima

por Gabriel Carvalho
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“Tudo passaria depressa, como tudo que se passa em São Paulo.”

Contém leves spoilers.

Recomeçar. Quantos anseiam pelo início de uma nova vida? Uma nova oportunidade. O seguir em frente sem olhar para trás. O esquecimento de um passado composto de dor e fraquejo humano, permeante na vida presente. Um presente que, caso pudéssemos, trocaríamos pela chance de recomeçar. O Brasil, na aura otimista do governo de JK e, mais à frente, nos tormentos prévios do golpe militar de 1964, abraça o desenvolvimentismo, a indústria automobilística. Nos conformes das cidades mais importantes da época, São Paulo recebe de braços abertos o progresso, iludindo o sonho do brasileiro ingênuo e escondendo, muitas vezes até em banheiros imundos, as mazelas da sociedade. Em uma época na qual a população urbana crescia exponencialmente, alcançando aos poucos a população rural brasileira, Carlos (Walmor Chagas) é mais um à procura da felicidade, presumidamente concedida de bom grado pelo ilusório “Brazilian” Way of Life, abrasileirado dessa forma, como tudo nesse país – vindo de fora e tornando-se dele. Uma ilusão embasada no mito do self-made man. A entrada de multinacionais no Brasil, com a própria produção de automóveis ocorrendo no território brasileiro, movimenta a premissa do filme, que coloca Carlos diante de várias oportunidades de emprego, paralelas aos seus encontros com distintas mulheres; um sinal de virilidade, de poder. Assim, vai-se esgotando a própria vitalidade do homem, que não só percebe a sociedade doentia que habita, como se cansa de fazer parte dela. Só resta fugir e, por fim, recomeçar.

O protagonista – teórico – do filme, Carlos é levado a interagir substancialmente com três amantes no longa. Em primeiro plano, temos a interesseira Ana (Darlene Glória), apresentada entre, literalmente, tapas e beijos. A narrativa, então, é dada em formato não-cronológico, podendo assim garantir, especialmente na intercessão entre as diferentes relações amorosas, na segunda metade do filme, pouco entendimento da história por parte do espectador, mesmo sendo notável que Carlos, com nenhuma dessas mulheres, aparenta ter alcançado a felicidade tão procurada. Até quando, após encontros e desencontros, casa-se finalmente com Luciana (Eva Wilma) e tem um filho, o personagem demonstra-se desgostado. O suor não o levou a nada. O sonho é uma mentira. Portanto, foge com tudo, mas sem nada, ironicamente roubando um carro nacional, fabricado pela indústria automobilística que tanto o destruiu. A vitimização da figura de Carlos é colocada em oposição aos seus aspectos mais grosseiros. Como sentir pena de um homem que deixa funcionários não regulamentados passar por horas e horas a fio, em condições de trabalho péssimas? Tão revoltante quanto a cena que meia dúzia de homens, todos esgotados fisicamente, revelam-se de banheiros apertados, escondidos de fiscais trabalhistas, é a cena na qual Arturo (Otelo Zeloni), imigrante italiano e sonegador de impostos, consegue coibir atitudes mais severas dos funcionários públicos. Uma palhaçada, na falta de palavras melhores, que, aliada à esperança brasileira de que “tudo vai dar certo no final“, não se esvai. Tudo continua, uniformemente variado.

Na área das interpretações, o longa-metragem, porém, dá algumas derrapadas. É perceptível, com considerável facilidade, que a personagem Hilda, interpretada por Ana Esmeralda, está sendo dublada por outra atriz, tornando todas as cenas envolvendo a personagem artificiais, embora o texto seja devidamente poderoso. A voz, porém, não se casa com a performance corporal. O argumento envolvendo a figura da intelectual mulher traz a depressão e a loucura próximas à busca da identificação com o abstrato, com a arte, sem, de fato, encontrar-se para si mesma justificativas diante de tantas problemáticas. Já Walmor Chagas consegue sair um pouco dessa fragilidade na direção de atores, transmitindo muito bem seus pesares, suas alegrias – poucas a serem mencionadas – e seus desvios morais. Contudo, mesmo que não esteja quebrando a quarta parede, como faz com certa inconstância, o espírito do voice-over acaba misturando-se com os diálogos de fato, revelando uma poesia expositiva de pensamentos. Uma bela poesia, entretanto.

As “brincadeiras” com a profundidade dos ambientes, dado o foco e a sombra, são presentes e muito bem-vindas. Luís Sérgio Person conduz a câmera com bastante ritmo, combinando os belos planos, em ângulos curiosos, com a boa trilha sonora, que muitas vezes falsificam um ar épico, talvez desnecessário para as mais mundanas situações. O silêncio evidenciaria mais a dramaticidade de algumas cenas. O cidadão comum, entretanto, em sua rotineira vida regular, nem mesmo um pouco diferente da vida de outros cidadãos comuns, encontra-se fascinado com a câmera de Person, que busca acompanhar a atuação de Walmor Chagas. Quando não há mais Carlos para protagonizar os planos, há ainda paulistanos para serem filmados pela câmera do diretor. No meio do homem comum, o filme encerra-se, sendo tão ordinário quanto relevante. A pressa das pessoas encontra paralelo com a corrida de São Silvestre, onde corredores buscam ultrapassar seus competidores, enquanto que, na vida regular, homens e mulheres, em sua grande maioria, dignos da caracterização “do bem” – bons pais e bons maridos, boas mães e boas esposas – são forçados pela organização da sociedade vil a ultrapassarem seus competidores, nada diferente deles mesmos. A rapidez na tomada de decisões convenientes, a facilidade de obtenção de crédito. Tudo garantia da edificação mentirosa, consequente da subida de classe por meio do mérito do pobre. Ninguém se torna ninguém.

Sob um outro ponto de vista, percebe-se que nenhuma das cenas foram filmadas em estúdio. A cidade de São Paulo está viva, e é a verdadeira personagem principal desta obra, invocando sua presença em cada plano, desde o inicial, onde encontra-se refletida nos imensos prédios da metrópole cinza, assim definida, mesmo que referenciada em preto e branco. A excelente fotografia dá margem a composições exuberantes, como na melancólica observação da cidade, pelas janelas, feita pelos olhos da neurótica Hilda, maquiando muito bem o desespero do homem que emerge da podridão e lá encontra seu descanso. Onde encontra-se o recomeço para o paulistano jovem e de classe média, que, mesmo estabilizado, permite-se afogar em uma insatisfação pungente? Onde encontra-se o recomeço de uma cidade, em eterna transformação, porém, também em eterna repetição? É de se estranhar que, mais de 50 anos depois, São Paulo, Sociedade Anônima pode ainda, dado os parâmetros históricos associados, ser considerado um filme extremamente atual. A alienação da sociedade na esperança da felicidade. O consumismo confortando o enlouquecimento e a deturpação coletiva. Uma obra que vocifera debates importantes sobre sistemas, mentalidades e moralidades. Os tempos passaram, mas no fundo tudo termina igual: no mesmo contínuo recomeço. Enfim, aceitar.

São Paulo, Sociedade Anônima — Brasil, 1965
Direção: Luís Sérgio Person
Roteiro: Luís Sérgio Person
Elenco: Walmor Chagas, Eva Wilma, Ana Esmeralda, Otelo Zeloni, Darlene Glória, Mário Audrá
Duração: 107 min.

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