Uma história de paradoxos. Enquanto descreve a situação desoladora de trabalhadores da região cacaueira, numa era de forte aquecimento econômico desta cultura em território brasileiro, o escritor baiano Jorge Amado consegue mesclar o cenário de dor com a beleza e a poesia da palavra. Assim é a sua literatura: críticas sociais e encantos. Com o romance São Jorge dos Ilhéus, publicado em 1944, o autor desenvolve, ao longo das 300 páginas do livro, uma espécie de continuidade das situações descritas em Terras do Sem Fim, produção antecessora. Adaptado para a linguagem televisiva e com histórias desenvolvidas entre Ilhéus e Itabuna, aqui encontramos uma narrativa com os temas habituais da trajetória do escritor: um painel de personagens envoltos em situações de machismo, mergulhados em cenários de riqueza cultural, com muita musicalidade, ancestralidade e religiosidade, além do forte poder do coronelismo com elemento definidor das relações políticas e sociais.
Nesta história onde o cacau é ouro, responsável por enriquecer muitos e matar outros, Jorge Amado tece as suas considerações sobre um tema constante ao longo de toda a sua vasta obra: as desigualdades sociais. Como de costume, há personagens que centralizam o enredo, juntamente com os diversos tipos que trafegam pelas extremidades: jogadores, prostitutas, comunistas, exportadores estrangeiros, coronéis e seus filhos, poetas de rua e os frequentadores dos cabarés. Aqui, o autor deixa os jagunços de lado e foca na preocupação econômica dos investidores diante da bolsa de valores. É a idade de Ouro do Cacau, produto que rende muito para aqueles que ocupam a parte superior da pirâmide social, em contraste com os trabalhadores, em situações análogas ao período da escravidão.
O centro nervoso da narrativa em São Jorge dos Ilhéus é o casal Firmino e Sinhazinha. Levados a se relacionar por conveniência, ambos não se gostavam o suficiente para enredar um casamento em suas vidas, mas assim o destino os aproxima. Da conexão surge o sentimento, mas eles precisam enfrentar obstáculos familiares, como o pai da jovem, Coronel Horácio, um homem que, por motivos econômicos e políticos, não enxerga com bons olhos a relação. Em meio aos sonhos, traições perversas, vinganças e dramas mesclados com momentos cômicos, os personagens do romance atravessam as suas existências ficcionais com o vigor de uma região que vivenciava os aparatos da modernidade, um dos temas mais corriqueiros da tessitura literária amadiana, em seu auge posteriormente, com Gabriela Cravo e Canela.
Por falar na famosa personagem, há em São Jorge dos Ilhéus menções ao icônico Nacib, um homem descrito como apaixonado pela mulher em questão, recém-chegada em sua região, figura ficcional cativante que transforma a vida de todos, em especial, do machista estrangeiro que descobrirá em seus dotes culinários e jeito inocente, as delícias do amor tropical. Sendo assim, além das situações cotidianas de romance, paixões e costumes do povo da região onde o livro de desenvolve, Jorge Amado também tece as guerras sangrentas por posses de terra, bem como a labuta de trabalhadores que não tem os seus direitos devidamente reconhecidos, oprimidos por uma classe que enriquece com o cultivo do cacau, enquanto eles se entregam de corpo e alma para receber uma recompensa irrisória. Sábio em suas descrições, o escritor traça um panorama do contexto histórico, mixando críticas sociais pungentes com uma prosa lírica que faz a leitura deslanchar vertiginosamente. Em linhas gerais, uma de suas melhores histórias.
São Jorge dos Ilhéus (Brasil) — 1944
Autor: Jorge Amado
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 340