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Crítica | The Sandman – 1X11: Calíope

Prender e forçar, para conseguir ter.

por Luiz Santiago
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Calíope é uma história de agonia. Em certa medida, se assemelha bastante à história de Morpheus, porque representa a primeira das nove musas da mitologia grega (responsável por inspirar a poesia épica, a eloquência e a ciência) sendo capturada por um humano e mantida em cativeiro por pouco mais de 60 anos (o Rei dos Sonhos ficou 100, e essa diferença de tempo o fez querer comprar sofrimentos com a ex, inclusive). Forçada a inspirar dois escritores de gerações diferentes e tendo sido estuprada ao longo de todo esse tempo em que passou presa, Calíope não tinha saída. Pelas leis da magia dos antigos deuses, ela só poderia ser liberta quando a pessoa que a tinha como propriedade a libertasse. Nenhuma outra força poderia fazer isso. Uma situação, como eu disse no início, de verdadeira agonia.

Em Sandman, as temáticas de criação, especialmente da escrita, são o fio condutor de toda a trajetória, algo que infelizmente escapa a muita gente, até a alguns que dizem que “leram toda a saga mais de uma vez“, como é possível ver em algumas bobagens escritas e filmadas por aí. Ao acompanhar um pedaço da vida desse Perpétuo, o que temos, na realidade, é uma visão geral de como a construção de ideias, de imagens, de objetivos/sonhos para a vida e para a humanidade se ergueram e foram progressivamente modificados. Em Calíope, história originalmente publicada em The Sandman #17 (edição de abertura do arco Terra dos Sonhos), contamos com mais uma camada imaginativa de Neil Gaiman para as mentalidades no século XX (nesta adaptação, avançando até o XXI), inicialmente com sonhos descoordenados, pesadelos livres e dificuldade de estabelecer um “padrão limpo de sonhar“. Aqui, vemos que a partir de um determinado período, a inspiração artística também foi corrompida.

Isso é muito interessante, porque mostra o autor imaginando duas grandes possibilidades para caminhos tão destrutivos, tão resignados ou derrotistas, em muitas áreas, que a humanidade trilhou ao longo do século passado. Em sua camada artística, o avanço da indústria cultural tornou a arte muitas vezes prisioneira do dinheiro, da construção de uma demanda rasa e automática de coisas que, cada vez menos, traz algo de verdadeiramente aproveitável. Com Calíope presa, essa norma tomou conta das coisas, e o que o autor sugere é que, com a libertação do Sonho e dessa Musa, a nova fase da humanidade deveria, no mínimo, ganhar um pouco mais de respeito, senso de comunidade e procura por algo que fosse além da básica rudeza e crueza do dia a dia. Novos sonhos e nova forma de se inspirar e produzir arte.

A interpretação do elenco principal aqui mantém o ótimo nível do grande elenco da 1ª Temporada, com a vantagem de não ter ninguém fora do tom. A progressiva força dada por Melissanthi Mahut (que tem ascendência grega, por sinal) à sua Calíope é algo notável, mostrando para o público como ela foi se enraivecendo e se tornando cada vez mais desesperada e ferida, fazendo de tudo para escapar da prisão, inclusive recorrendo ao antigo marido, abrindo espaço para um dos momentos mais tocantes do episódio. Cada segundo de Tom Sturridge na tela é um verdadeiro primor (e aqui, dou destaque para o seu olhar simplesmente épico!), mas as cenas que ele divide com Mahut são imbatíveis. A cumplicidade entre os personagens, a construção dramatúrgica intocável dos dois atores e a química que possuem, mesmo sendo divindades que não possuem o visível “calor amoroso” ao qual estamos tão acostumados em demonstração de afeto, mostram como a escalação aqui é de primeira linha.

Derek Jacobi está ótimo no papel de Erasmus Fry, o escritor mais velho, e Arthur Darvill tem uma aplaudível performance como Richard Madoc, que começa meio tímido e desesperado e termina sendo odiado pelo público. Ele é bastante sutil nas transformações, mas em um nível que até mesmo o espectador mais distraído consegue notar. Neste episódio, tanto ele quanto as divindades são colocados diante de um desafio, de uma escolha. Calíope deixa o orgulho de lado. Morpheus aprende a pedir permissão antes de agir (e aprende que o perdão não necessariamente é para o perdoado, mas para a saúde da própria vítima; e que isso não significa perdoar os atos do agressor). E Madoc aprende que não se deve seguir qualquer caminho para manter ou realizar um sonho, especialmente se este caminho retira a liberdade de outras pessoas seguirem suas vidas e também poderem sonhar. É uma lição para todos, que termina com impactos e sentimentos bem diferentes. Uma dispersão na agonia e a possibilidade de uma luz no fim do túnel da humanidade.

Sandman – 1X11: Calíope (Calliope) — EUA, Reino Unido, 19 de agosto de 2022
Direção: Louise Hooper
Roteiro: Catherine Smyth-McMullen
Elenco: Tom Sturridge, Melissanthi Mahut, Arthur Darvill, Nina Wadia, Souad Faress, Dinita Gohil, Kevin Harvey, Amita Suman, Derek Jacobi
Duração: 40 min.

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