Na crítica de Attila, elogiei a soberba transição visual de Mark indo da Lumon para o seu porão, puxando a audiência para dentro da experiência desorientadora do protagonista com a reintegração. Chikhai Bardo faz isso em uma escala maior, com a cineasta Jessica Lee Gagné – que vinha trabalhando como diretora de fotografia na série – e os roteiristas Dan Erickson e Mark Friedman tecendo uma narrativa não-linear que explora o passado de Mark e Gemma ao mesmo tempo que contextualiza e revela os acontecimentos por trás do experimentos da “Ms. Casey” na empresa. Um estudo de personagem complexo, em especial de Gemma, que merecia um capítulo como esse de foco individual, e uma análise existencial de memórias, tempo, amor e luto, temos outra obra-prima na temporada, que dessa vez vai fundo na psique dos personagens e nos esquemas da Lumon, que continua ficando mais e mais sinistra à medida que a narrativa progride.
Antes de falar da história em si, importante destacar a qualidade técnica da produção, que segue impecável. Esse episódio particularmente me arrebatou por conta de algumas escolhas criativas muito inteligentes e muito cuidadosas em torno do roteiro difícil de ser adaptado visualmente por conta de suas sobreposições de flashbacks do casal com os elementos dentro da Lumon. A diretora Jessica Lee Gagné logo de cara faz uma distinção visual que separa bem os dois lados da trama, filmando os momentos do passado em 16mm, trazendo aquele aspecto de nostalgia, de memórias e de um certo calor visual – com destaque para a fotografia também – que transpassam o sentimento de algo por oras doce, quando estamos vendo a dupla feliz, e por oras melancólico, quando os personagens passam por dificuldades. Mais do que isso, a cineasta traz um olhar intimista para esses momentos, em uma dieta de close-ups e enquadramentos minimalistas, que recriam com singelo e sutileza o relacionamento de Mark e Gemma do qual até o momento só tínhamos conhecido através da dor e do luto – importante destacar como o roteiro sabe dar espaço para que o matrimônio deles tenha vida, com várias cenas falsamente ordinárias, mas importantes para estabelecer o carinho, o amor e, claro, os problemas dos personagens.
Já na Lumon, Lee Gagné segue a identidade visual estabelecida por outros diretores, mesclando os momentos daquela esquisitice imaculada da empresa com situações sombrias e de suspense que flertam com o horror na apresentação do subsolo bizarro do prédio, com destaque para a decupagem nas diversas passagens de Gemma pelos quartos de testes (mais disso à frente), que se aproveitam da sensação de algo obscuro sendo feito com a personagem, de um sentimento de inquietação visual (muito bem interpretado por Dichen Lachman), enfatizado pela presença desconfortável e ameaçadora do Dr. Mauer (Robby Benson), comicamente perverso em seus vários papéis psicologicamente deturpadores. Uma cena em específico é exemplificativa do trabalho meticuloso do episódio: a fuga de Gemma; com direção de suspense engenhosa, trilha que aumenta a ansiedade e uso criativo do cenário com as iluminações por sensor das paredes.
Todos esses elementos técnicos reforçam a grande qualidade do episódio: a forma como aproxima a audiência do princípio de desorientação que os personagens se encontram, presos em cantos das suas próprias mentes, encurralados em corredores mentais criados pela Lumon e fragmentados entre diferentes personalidades. A forma como o roteiro estrutura a narrativa não-linear e especialmente como a produção nos transpassa isso através de grandes transições – seja a direção, a edição e até a cenografia, em uma direção artística sensacional na forma como incorpora a mistura temporal da trama – é a grande conquista técnica do episódio em minha visão, que dispõe, sim, de um texto incrível que abordarei mais à frente, mas que nos faz sentir o que os personagens estão sentindo. Na crítica da primeira temporada, disse que os personagens pareciam ratos de escritório, mas o enredo tem tomado dimensões psicológicas mais terríveis do que imaginava. Estamos gradualmente saindo de um comentário ao capitalismo e ao corporativismo para uma discussão cada vez mais filosófica sobre identidade e individualidade, com a conspiração em torno da Lumon tomando um rumo de complexidade e de mistério difícil de desvendar.
Falando agora da trama, é perceptível que esse episódio estabelece que o projeto inteiro da Lumon é centrado em Mark e em Gemma. Usando de dica o conceito budista que dá título ao capítulo e que é abordado em uma cena entre o casal, a narrativa traça alguns paralelos com a morte do ego e a perda de identidade, sugerindo que o experimento é sobre algum tipo de destruição da nossa individualidade com algo relacionado a traumas. É tudo muito críptico para pensarmos em algum tipo de resposta, mas por mais confusa e absurda que a narrativa possa parecer, temos contornos temáticos que indicam uma explicação interessante para o Cold Harbor. Eu sempre suspeitei que o procedimento de ruptura tivesse relação com a submissão e a doutrinação para corporações terem funcionários robotizados, algo que foi se reformulando na minha cabeça à medida que nos aprofundamos no culto à Kier. De qualquer forma, o que Chikhai Bardo faz é nos manter intrigados com essa ideia da “perda do eu” através de uma perturbadora experimentação com Gemma – incluindo outras dicas, como a passagem sobre A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói -, mas principalmente que nos identifiquemos com o casal no centro disso tudo.
Ruptura é uma salada temática e narrativa complexa, mas dentre seus vários elementos e sua mitologia rica, algo que vem ganhando espaço é a tragédia romântica de Mark e Gemma. Desde que o protagonista chamou Rhegabi de Perséfone (sugerindo que a mesma é uma traidora, o que tornaria sua personagem pelo menos interessante…), comecei a suspeitar que a obra tem inspiração na lenda de Orfeu e Eurídice, que, em síntese, conta uma história de amor funesta em que Orfeu precisa salvar sua amada do submundo. Pensando nesse sentido, Chikhai Bardo é um capítulo essencial para, primeiro, nos simpatizarmos e nos conectarmos com o casal, e, segundo, para revelar (mesmo que pouco) seus papéis nesse projeto da Lumon. O fato de termos uma abordagem técnica impecável e um roteiro profundo que mistura os dois aspectos em uma narrativa evocativa, desorientadora, enigmática e dramaticamente arrasadora é a cereja do bolo. Outra semana, outra experiência especial com essa série. Agora sabemos o que jaz no elevador e, aparentemente, a reintegração foi finalizada. Veremos agora se esse casal que já sofreu tanto conseguirá vencer o inimigo; e, mais interessante do que tudo isso, quais são os malditos planos desse inimigo!
Ruptura (Severance) – 2X07: Chikhai Bardo | EUA, 28 de fevereiro de 2025
Criação: Dan Erickson
Direção: Jessica Lee Gagné
Roteiro: Dan Erickson, Mark Friedman
Elenco: Adam Scott, Zach Cherry, Britt Lower, Tramell Tillman, Dichen Lachman, John Turturro, Bob Balaban, Alia Shawkat, Stefano Carannante, Sarah Sherman, Christopher Walken, Patricia Arquette, Jen Tullock, Michael Chernus, Sarah Bock, Ólafur Darri Ólafsso, Robby Benson
Duração: 48 min.