Depois de quase três anos desde o final absolutamente perfeito de The We We Are, uma das melhores séries recentes volta com um recomeço interessante e cheio de novos enigmas. A primeira temporada de Ruptura foi tão icônica que mesmo com o longo hiato, me lembro de praticamente tudo que aconteceu no ano de estreia, com exceção de um detalhe aqui e ali. Em síntese, o tenso final da temporada acompanhou os internos Mark (Adam Scott), Helly (Britt Lower) e Irving (John Turturro) acordando no mundo externo, onde fazem descobertas chocantes e revelam publicamente a subjugação e o tormento de quem trabalha para a Lumon, logo antes de voltarem para seu “estado” normal.
Hello, Ms. Cobel tem uma abordagem intrigante: voltar com um salto temporal de cinco meses, mas com os internos acordando logo depois dos eventos de The We We Are. Essa inteligente escolha narrativa abre uma estrada misteriosa para a produção, tanto do ponto de vista dos personagens, que retornam para uma realidade que não sabem exatamente os efeitos dos seus atos, quanto da audiência, que não tem ideia do que ocorreu no mundo externo, sagazmente não retratado nesse início de temporada. Dessa forma, somos reapresentados a uma espécie de reset narrativo, em que retornamos para a estaca zero dos personagens presos no escritório com mais perguntas do que respostas, onde o showrunner Dan Erickson pode manter/recriar seu tom paciente com uma queima lenta da narrativa, apresentando novos mistérios, teorias e reviravoltas que devem ser construídas com qualidade.
Ainda assim, não é um episódio repetitivo. Pelo contrário, a abertura da segunda temporada mostra Mark desesperadamente correndo pelos corredores do escritório, algo que serve de contraste para o episódio de estreia, em que vemos o protagonista andando pelos mesmos corredores tranquilamente. As coisas mudaram; inclusive, Mark agora tem uma nova equipe, enquanto Cobel não é mais sua superior, sendo substituída pelo ainda assustador Milchick (Tramell Tillman). Todo o pânico desse início do episódio é muito bem dirigido por Ben Stiller, que traz de volta aquela ideia de um labirinto interminável e claustrofóbico, dessa vez com o nível de tensão dramática substituindo as sensações de labuta do começo da série com seus diversos planos uniformes e propositalmente tediosos dos personagens eternamente percorrendo os corredores ou trabalhando em seus cubículos.
À medida que Milchick começa a esclarecer – ou mentir, vai saber – sobre as consequências da saída dos internos para o mundo externo, a narrativa gradualmente levanta novos questionamentos. Dentre eles, se houve realmente uma reforma para as mudanças trabalhistas da empresa, qual é a reação do público geral sobre as revelações de Helly, o que aconteceu com a Cobel, porquê a Helly mentiu sobre sua experiência no mundo externo, etc. A sensação de que estamos recebendo mais perguntas do que soluções pode ser ruim para alguns espectadores que aguardaram respostas e consequências de The We We Are, mas gosto da abordagem de Dan Erickson aqui, criando novas intrigas e preparando o terreno para uma temporada que deve explicar algumas coisas ao mesmo passo que apresenta novos elementos.
Particularmente, gosto de como o roteiro dá espaço dramático para os personagens principais lidarem com suas experiências no exterior, com destaque especial para Irving e seu choque de realidade melancólico, incluindo pensamentos suicidas. O seriado volta a discutir questões identitárias nesses blocos, principalmente se esses indivíduos preferem se demitir – em outras palavras, morrer – ou seguir nessa estranha dicotomia perversa dentro da Lumon. Penso que é um tema realmente engajante e profundamente filosófico se bem abordado, agregado com possíveis camadas quando tivermos mais tempo de tela no mundo externo, de como as versões “reais” desses personagens reagiram à situação e como lidar com as diferenças de experiências deles, algo já levantado com Helly e sua total dissociação e desdém pelos atos de sua externa.
Além disso, a sátira do texto de Erickson continua afiadíssima. Os blocos em torno das “melhorias” da Lumon no ambiente de trabalho são deliciosamente irônicos, absurdos e tragicamente próximos de muitas realidades corporativistas, que fazem “esforços” para manterem seus funcionários “felizes”, sempre dentro, claro, do interesse da empresa. A verdade é que todas as informações repassadas por Milchick fedem a jogos psicológicos manipulativos, como a chantagem emocional com Dylan, além de que a apresentação em stop-motion narrada por Keanu Reeves caminha na linha de surrealismo macabro da obra, que soa cômica e sombria ao mesmo tempo, servindo mais como terror emocional do que a proposta de um novo ambiente.
O quê de doutrinação ritualística do episódio, como, por exemplo, a pintura do fundador Kier abençoando quatro cabeças com uma mensagem de perdão aos traidores, é a cereja do bolo temático e da linguagem visual engenhosa da produção, que segue enfatizando seus elementos através de um cuidado muito grande com mudanças de iluminação, paleta de cores, simbologias com pinturas e trilha sonora tétrica. Hello, Ms. Cobel pode acabar não sendo o retorno mais “explosivo” que alguns esperaram, mas Ruptura retorna com um episódio que encapsula o que há de melhor na série: uma narrativa profundamente perturbadora, comicamente ácida e provocante; envelopada dentro de um sci-fi que tem muitas teorias instigantes em torno de seu processo lento cheio de mistérios e enigmas que nos intrigam, nos fascinam e nos fazem refletir. O gancho com Casey/Gemma é o ponto de exclamação de um recomeço que parece ser cruel para nosso grupo de personagens.
Ruptura (Severance) – 2X01: Hello, Ms. Cobel | EUA, 17 de janeiro de 2024
Criação: Dan Erickson
Direção: Ben Stiller
Roteiro: Dan Erickson
Elenco: Adam Scott, Zach Cherry, Britt Lower, Tramell Tillman, Dichen Lachman, John Turturro, Bob Balaban, Alia Shawkat, Stefano Carannante, Sarah Sherman, Keanu Reeves
Duração: 48 min.