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Crítica | Ruptura – 1ª Temporada

Ratos de escritório.

por Kevin Rick
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Ruptura é uma série conceitualmente fascinante, partindo de uma premissa em que Mark (Adam Scott), concorda com um programa pelo qual suas memórias são divididas entre sua vida no trabalho e sua vida doméstica, basicamente criando duas versões da mesma pessoa. Em miúdos, temos um Mark que perde 8 horas diárias da sua vida para lidar da maneira menos saudável possível com a morte de sua esposa, e também temos outro Mark que passa cada minuto da sua existência trabalhando. A base de ficção científica tem traçado muitas comparações com Black Mirror, e, apesar de entender a conexão das obras, acredito que Ruptura é menos uma crítica à tecnologia e nossas dinâmicas com ela, e bem mais uma alegoria em forma de metáfora para a prisão corporativista e a rotina exaustiva que grande parte das pessoas vivenciam.

A obra dispõe de uma linguagem visual engenhosa para enfatizar a proposta temática. O design de produção cria o ambiente asséptico e desprovido de vida na empresa Lumon, com corredores brancos que passam a impressão de que os personagens são ratos de laboratório num labirinto interminável e também a forma claustrofóbica de alguns cenários, desde os cubículos estreitos até o elevador apertado, assim como temos grandes espaços em vácuo nos departamentos que dão uma sensação enervante de vazio. Também acho interessante a escolha por uma arquitetura meio moderna, até meio futurística eu diria, misturada com elementos de escritório dos anos 60, 70 e 80 (os computadores de caixotes, o alto-falante do conselho) que dão ao ambiente um aspecto diegético fora do tempo e com linhas de fantasia realista, além de alguns momentos levemente embebidos de um suspense macabro/surrealista como na “Sala de Descanso”, na obsessão visual por pinturas, na iluminação por sensor de alguns corredores e, claro, num departamento que cria cabras.

Existe um cuidado visual e textual fora do comum para criar em Lumon uma prisão alegórica, mas é a direção de Aoife McArdle e principalmente Ben Stiller que criam a atmosfera ao redor do ambiente. O primeiro episódio dirigido por Stiller é formalmente primoroso, ditando o tom do restante da temporada. A direção foca num certo desconforto do escritório em sua simetria inquietante, planos uniformes e propositalmente tediosos (como os dos personagens eternamente percorrendo os corredores), e uma separação distinta de tons entre o aspecto superficialmente perfeito, brilhantemente branco e quase intocado dentro de Lumon contrastando com o mundo escuro e planos disformes fora das paredes. Também há de se elogiar a fotografia, figurino e a paleta de cores da produção, que trazem uma “desestilização” da Lumon em seu estilo mudo e sem vida (como escritórios normalmente são), que deixa a audiência numa percepção imersiva de labuta e rotina. Tudo isso acompanhado por uma trilha sonora de melodia simples, mas incrivelmente sinistra.

Estou focando bastante em aspectos mais técnicos, pois fiquei deslumbrado em como Ruptura cria uma forma de mitologia e uma história quase ritualística em torno do escritório, desenvolvendo a cultura de Lumon como um universo próprio. Todo o lance com o criador Kier, o manual e as diferentes punições funcionam como uma espécie de doutrinação diluída em alfinetadas e reflexões sobre a divisão de vida pessoal/laboral e as práticas infernais do corporativismo e a hierarquia do mercado de trabalho que lentamente sugam as pessoas. Essas escolhas visuais são consequências diretas do roteiro ácido, satírico e ambíguo do criador Dan Erickson, bastante interessado em nos situar no cotidiano absurdo na Lumon (notem o tom paciente e a queima lenta da narrativa) e na construção de um microcosmo para tocar de maneira profunda em temas como luto, identidade, cotidiano e moralidade.

Também é notável a versatilidade e domínio geral da história de Erickson e sua equipe de roteiristas. De forma mais ampla, o autor envolve a ficção científica para fazer um estudo psicológico dos personagens e também de dinâmicas sociais, e, como já disse, a proposta da série também se concentra na cultura do ambiente. Nesse sentido, podemos ver o tratamento cômico da obra, como nas interações constrangedoras e no humor ácido em Lumon (a festa do Dylan é um exemplar fantástico disso), e também no cerne absurdista da situação toda. Mas é especialmente formidável como Erickson gradualmente molda a narrativa num enredo de conspiração, inserindo elementos de thriller e suspense com reviravoltas bem compostas e orgânicas, mistérios calmamente expostos e até um processo investigativo engajante, segmentado entre as descobertas dos diferentes mundos de Mark e companhia.

Sem dúvidas, Ruptura é uma das melhores séries que assisti nos últimos anos. Desde o cuidado técnico para nos investir na alegoria e no mistério, do subtexto crítico e filosófico em torno de temas profundamente realistas, até os arcos dos personagens empáticos, a obra gira muitas ideias e aborda muitos elementos para oferecer uma experiência fascinante. No meio de tanta qualidade na produção, acabei deixando de falar das ótimas atuações, em especial de Adam Scott, que transita de maneira soberba entre as diferentes “versões” de Mark, mudando postura e leves nuances para nos identificarmos com seus diferentes conflitos. Um universo sedutor, dramas reflexivos e uma narrativa compulsiva, Ruptura entra no cenário de melhores obras da telinha na atualidade.

Ruptura (Severance) – 1ª Temporada — EUA, 2022
Criação: Dan Erickson
Direção: Aoife McArdle, Ben Stiller
Roteiro: Dan Erickson, Andrew Colville, Kari Drake, Anna Ouyang Moench, Amanda Overton, Helen Leigh, Chris Black
Elenco: Adam Scott, Zach Cherry, Britt Lower, Tramell Tillman, Jen Tullock, Dichen Lachman, Michael Chernus, John Turturro, Christopher Walken, Patricia Arquette
Duração: 09 episódios de aprox. 40-60 min.

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