Progressão de história com narrativa não-linear. Taí uma abordagem extremamente corajosa ao pensarmos na sua dificuldade de execução, afinal, parte de uma proposta inicial em que seu desfecho está na origem. Erroneamente, muitas pessoas consideram as palavras “história” e “narrativa” sinônimos, mas na verdade, falando em termos mais simples, a história são os acontecimentos e a narrativa é o meio, o como é contado. Logo, ao situar seus eventos de trás para a frente, a trilogia Rua do Medo tem a hercúlea tarefa de contar uma história geral enquanto orquestrada narrativamente em reverso.
E aí entra meu principal problema com o primeiro filme da trilogia: superexposição. A saída encontrada pelo roteiro em Rua do Medo: 1994 para estabelecer seu quadro geral está nos vários diálogos explicando a mitologia para uma posterior compensação. É um artifício narrativo pobre que sacrifica a tensão e a experiência contida da primeira entrada na cinessérie. Ainda acho o saldo positivo por outros elementos que citei na crítica anterior, mas é um filme que sofre bastante com seu teor introdutório.
A segunda parte da trilogia não padece do mesmo problema. Pode-se dizer que a fita se beneficia da introdução do primeiro, mas eu não acho. O filme nos leva para o acampamento Nigthwing em 1978, para conhecermos o passado de C. Berman (Gillian Jacobs), a única pessoa que viu a bruxa e sobreviveu. A proposta da obra é extremamente similar ao filme anterior, nos levando a um período que homenageia o slasher característico da sua época, sendo aqui a influência clara de Halloween e Sexta-feira 13. Contudo, exatamente pelas semelhanças, a sequência cria um encadeamento parecido, no qual vemos um grupo de jovens azarados se darem conta que estão em uma história de horror, descobrindo o passado de Shadyside, a maldição de Sarah Fier, etc.
Apesar da audiência já estar ciente desses eventos, o filme faz seu trabalho de introdução bem mais eficientemente que o anterior. Eu diria até que, com exceções das sequências em 1994, um espectador poderia – não devia – começar sua caminhada por aqui e facilmente entender toda a lore deste universo. Como disse, não vejo Rua do Medo: 1978 se beneficiando da introdução do anterior, mas, de certa forma, deixa o primeiro mais fraco no quadro geral.
Não estou trazendo isso à tona apenas como comparação e crítica à 1994, mas sim para elogiar uma sequência que encontra meios de reiterar eventos que já conhecíamos para seus personagens sem cair numa monotonia de repetição, e, na verdade, vai muito além, mantendo a mitologia viva, inserindo novos elementos, utilizando uma construção narrativa implícita e orgânica. As explicações de lore no filme são feitas para mover a trama como na ótima sequência da caverna – e que ótima direção de arte, não? Da macabra criatura a la filmes de John Carpenter até o caprichado musgo que dá um ótimo contraste com o sombrio, divertidamente situado embaixo de uma privada; adorei aquele bloco. Resumindo essa ideia, o roteiro é mais justo e inteligente em construir narrativamente a história “principal” com os eventos em tela, progredindo a mitologia sem parar para explicitamente referi-la.
Além disso, a cineasta Leigh Janiak, dispondo de uma narrativa mais livre de exposição, constrói a obra em cima dos elementos positivos da entrada anterior. Saíssem os shoppings e as luzes de neon, entra o estilo retro, a ambientação florestal, os tons mais escuros, menos metalinguagem e mais terror bruto. É um típico filme de massacre, a mesma proposta de ode a clássicos do slasher, mas a diretora continua sua ótima caminhada de subverter e negar estereótipos e clichês ruins do subgênero.
Novamente, o relacionamento e a pessoalidade dos personagens tomam a frente do filme. E diria que a obra é ainda mais amarrada dramaticamente com um elenco juvenil melhor, subtramas mais aprofundadas, especialmente o foco na relação das irmãs Berman e a amizade entre Cindy (Emily Rudd) e Alice (Ryan Simpinks). É o tipo de terror adolescente que te faz importar com os personagens, procura caminhos de empatia, mesmo que seja no melodrama hormonal – quem nunca passou pelos exageros da adolescência? -, para trazer mais impacto emocional com a morte. Também podemos ver como a construção de personagens é bem pensada nas suas reações calibradas. Não é um filme que preza pela estupidez das escolhas de personagens ou coloca adolescentes estereotipados para morte gratuita, mas procura um contexto dramático e de textura para a atmosfera do subgênero.
Outro ponto interessante está na violência. Não vejo Janiak com uma boa mão para suspense, e a montagem de jump scares é extremamente genérica, mas caramba, como o massacre tem um teor seco, em alguns momentos difícil de assistir. Não chega a ser visceral como, por exemplo, as mortes do shopping em 1994, mas há um contorno dramático na morte, a repetição de machadadas, a câmera em foco na ferida, a falta de trilha sonora para escutarmos a dilaceração da carne. De forma alguma vejo como uma violência gratuita, mas sim como um belo exemplo de horror visual construído com drama, uma estilização dura do assassinato e a transposição do conteúdo (massacre) na forma sensorial, especialmente na cena final entre as irmãs.
Sabem quando vocês terminam um filme e um pensamento flutua sua mente de que você gostou da experiência mais do que deveria? Assistir Rua do Medo: 1978 foi exatamente assim para mim. Não é guilty pleasure (odeio esse termo), mas sim porque ainda não havia formulado meu sentimento com ideias, e não tinha perfeitamente pensado nos motivos que me fizeram gostar tanto de uma obra que não parece ser especial, e de muitas formas é genérica – mas adora se divertir dentro do habitual do gênero. Escrevendo, notei que a experiência largamente positiva veio de um filme que é completamente consciente de si mesmo (homenagem à slashers, equilíbrio de forma e conteúdo para a proposta de massacre, subversão de clichês e boas doses de drama juvenil), orquestrado narrativamente (trama objetiva, história geral e mitologia) e estilisticamente (nostalgia, direção de arte e violência visual e sensorial) dentro do seu contexto de progressão não-linear, desenvolvendo o que veio antes e deixando o campo pronto para o último filme. Não é uma obra memorável ou “diferente”, mas é difícil não adorar um filme que amarra cada um de seus elementos em uma unidade coesa para sua proposta. Que venha a bruxa!
Rua do Medo: 1978 – Parte 2 (Fear Street: Part 2 – 1978) | EUA, 09 de julho de 2021
Direção: Leigh Janiak
Roteiro: Leigh Janiak, Phil Graziadei, Zak Olkewicz
Elenco: Sadie Sink, Emily Rudd, Ryan Simpkins, McCabe Slye, Ted Sutherland, Jordana Spiro, Gillian Jacobs, Kiana Madeira, Benjamin Flores Jr., Ashley Zukerman, Olivia Scott Welch, Chiara Aurelia, Jordyn DiNatale
Duração: 110 min.