O cinema brasileiro contemporâneo, que obviamente não se restringe a um rótulo, parece se atirar em várias direções. Entre tantos exemplos, podemos encontrar um extremo realismo social; experimentações entre o ficcional e o documental; documentários extremamente personalíssimos, emulações de um certo cinema art house europeu e tantas outras modalidades, incluindo até retornos ao Cinema Novo e cinema de vampiro. No meio de tantos caminhos sendo seguidos, eu particularmente sentia falta do simples, aquilo que não é tão buscado, provavelmente por se tratar de um modelo clássico, que alguns diriam até ultrapassado, que é a clássica aventura. Rosa Tirana nada mais é do que uma modalidade deste gênero repleta de fabulações a partir do ponto de vista infantil. A personagem, assim como tantas outras exemplares do gênero (Alice, Dorothy), parte em uma aventura no meio de uma terra desconhecida que lhe proporcionará encontros inusitados tendo como mote um pedido um tanto quanto inusitado: pedir à santa padroeira do Sertão para que chova no Sertão.
Portanto, se Rosa Tirana segue um modelo clássico de aventura, não há como esperar outra coisa senão o seguimento de certas regras e universalidades que o mesmo propõe. O letreiro que abre o filme dita o tom de aventura atemporal e mágica (“Sertão Nordestino, Setembro de um ano qualquer, em uma terra banhada do sol”), há a condição inicial adversa que leva a protagonista a sair em sua jornada, têm um vilão que irá atrapalhar seu caminho, há o aparecimento de seres estranhos daquele mundo peculiar, além de que também se cruza com pessoas de bem que irão ajudar em sua jornada do ponto A ao B. De mesmo modo, sem dúvidas, o final mágico e otimista também se encontra dentro de tais convenções, que são usadas de modo favorável a criar esse universo lúdico.
Ao mesmo tempo, Rosa Tirana é bastante particular ao ter a realidade brasileira como seu revestimento, ainda que seu esqueleto seja universal. A extrema seca é o grande vilão natural e o Sertão se torna um personagem central, no qual a direção de Rogério parece sempre querer buscar um contraponto entre a sua dureza, ao mesmo tempo que também evidencia sua grande beleza natural, com um céu sempre bastante azul capturado pela fotografia de Luis Henrique Girade e Filipe Sobral. Há cuidadosamente essa adoção do ponto de vista de sua protagonista, neste jogo onde o medo da jornada e o deslumbre da descoberta vão sendo constantemente alternados. Igualmente, os créditos iniciais emulam uma espécie de Cordel; o vilão segue uma caracterização de um coronel do Sertão com seu chicote; dança-se uma espécie de carnaval local; há o encontro com criaturas fictícias mas certamente filhas do Sertão e também a intensa presença do Cristianismo.
Todos esses elementos locais ajudam a modular essa história e fazem com que Rosa Tirana seja extremamente charmoso por recorrer ao “simples” para criar sua fábula brasileira com questões locais. Portanto, é universal em sua narrativa, mas muitíssimo particular em sua retratação de um Sertão a partir de um olhar infantil. O grande mérito da direção é nesse investimento em seu mundo mágico, ao mesmo que também nunca abandona 100% o realismo e as condições sociais que afligem a protagonista, ainda que o tom predominante seja bem leve. Um grande exemplo desse jogo entre realismo e ficcional é quando há uma sequência onde a protagonista passa por umas fitas e repentinamente, parece atravessar um portal mágico e surge um grupo dançando, levando a protagonista consigo, dando início a uma sequência extremamente sensorial que se leva pelo fluxo do momento, assim como a câmera de Sagui.
No fim, a jornada vivida pela protagonista gera uma recompensa tanto para ela quanto para o espectador, a partir de um momento que o clímax funciona como um acúmulo que foi sendo construído até então, de uma narrativa que abriu cada vez mais espaço para o fabular entrar, só restando com a chuva que cai do nada seja o único desfecho possível, sem espaço para ceticismo, mas apenas a caída daquele milagre, divino e até abençoado. O espírito e a inocência infantil devem valer de alguma coisa ainda nesse mundo e no cinema brasileiro, especificamente. Ainda está vivo o caráter lúdico do Cinema e a confiança em seu potencial modificador, onde se pode criar ficções otimistas que possam dar um pingo de esperança ao seu povo, de vencer a realidade através da mágica cinematográfica. Final feliz.
Rosa Tirana (Brasil, 2021)
Direção: Rogério Sagui
Roteiro: Rogério Sagui
Elenco: Kiarah Rocha, José Dumont, Stela de Jesus, Rogério Leandro, Carlos White, Yan Quadros, Jocimário Kannário, Mufula, Eline D’Goió, Sindy Rodrigues, Maria Flor
Duração: 71 mins