Home Diversos Crítica | Romances de Cordel, de Ferreira Gullar

Crítica | Romances de Cordel, de Ferreira Gullar

Cordel, militância e sociedade.

por Luiz Santiago
2 views

Em Romances de Cordel, temos uma coletânea que reúne quatro narrativas de Ferreira Gullar, escritas entre os anos de 1962 e 1967, durante sua participação ativa no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Nesses poemas, Gullar aborda, de forma direta, questões sociais e políticas, dando voz ao trabalhador humilde, ao homem do campo, à mulher da favela e ao oprimido que clama por seus direitos básicos, mas que são massacrados pela mão armada do Estado ou pelas condições de vida nas quais esse Estado burguês os força a viver.

A opção pelo cordel, uma forma de poesia que tem raízes profundas no Nordeste, mostra o quanto o autor se alinha com as causas populares, usando uma linguagem simples e rimas de cadência mais confortável, apresentando-nos poemas que expõem situações (infelizmente) corriqueiras no Brasil, mas com forte centelha de esperança, gerada pela militância política, que o autor incentiva. Gosto muito das xilogravuras de Ciro Fernandes, na edição da editora José Olympio: um projeto estético que traz um toque perfeitamente alinhado à proposta do volume, tanto naquilo que está desenhado (a materialidade do sofrimento e da luta), quanto na concepção cultural dessa produção, que faz um perfeito par com o cordel.

Se existe algo que acaba diminuindo parte do valor desse material é, certamente, o seu propósito de criação panfletário. A arte de propaganda sempre gera olhares tortos de algumas pessoas, mas é inegável que esse tipo de abordagem tem seu valor… e é necessária. O que não significa que todos os exercícios de mobilização (nesse caso, através de versos) sejam bons do início ao fim, ou funcionem verdadeiramente como produto artístico bruto. Parte dos cordéis deste livro são excelentes, mas muitas estrofes perdem o brilho do verso para dar espaço ao chamado revolucionário puro e simples. Pessoalmente, gosto mais de engajada que trabalha questões ao menos um pouco indiretamente, todavia, entendo o propósito dessas narrativas de Gullar, bem como o tom e o conteúdo que o autor escolheu para figurar em seus versos.  

Nos deparamos aqui com histórias de quem está à margem da sociedade e passa pelas mais terríveis provações e humilhações (Quem Matou Aparecida? – História de uma Favelada de Ateou Fogo às Vestes); de um militar e, depois, político perseguido pela ditadura (História de um Valente, meu cordel favorito do volume, juntamente com Quem Matou Aparecida?); de um sertanejo que milita pela causa dos peões, é demitido, e não consegue mais emprego em nenhuma fazenda (João Boa-Morte, Cabra Marcado Pra Morrer); e de quem luta contra a dominação cultural dos Estados Unidos (Peleja de Zé Molesta Contra Tio Sam). É um conjunto múltiplo de realidades, tons dramáticos e atores sociais em cena, permitindo ao leitor acompanhar a verve do autor em cenários e conflitos distintos, bem como perceber as diferentes maneiras de submissão a que a classe trabalhadora, a arte popular e os militantes contra o abuso são submetidos. 

Todas essas histórias de luta são seguidas por linhas de superação e de um chamado à ação política, ressaltando a importância da organização nas bases locais, e como uma rede de solidariedade e empenho social, nos bairros e cidades, pode começar a fazer a diferença na vida dos trabalhadores. Em termos poéticos, é nesse aspecto que temos versos com valor mais “barato”, pois expõem o apelo ideológico sem rodeios, como um jingle bem escrito, mas, como já apontei, são momentos que não conseguem se sobressair a todo o restante da construção narrativa do autor, que é realmente muito boa. 

Cotidiano e revolução (ou a necessidade desta) se fundem nas histórias de Romances de Cordel, em contextos que mostram os motivos que as massas têm para lutar, as armas que podem utilizar e como podem vencer seus algozes, que estão em número bem menor. É o retrato de um lado do Brasil que encontramos até os dias de hoje, o que faz esses chamados poéticos terem importância didática a longo prazo: versos-arma que não serão esquecidos. A poesia de Gullar é um grito às ruas, à união com outros indivíduos na mesma situação, à irmandade militante e empática que, mesmo cheia de contradições, une forças para lutar contra desigualdades. Entre rimas que encantam e palavras que revoltam, o poeta deixa claro que literatura boa é aquela que não vira as costas para as dores (e às vezes às esperanças) do povo, trazendo o fogo e a forma de controlá-lo, quando for preciso.

Romances de Cordel (Brasil, 2009) 
Autor: Ferreira Gullar
Desenhos (xilogravuras): Ciro Fernandes
Editora: José Olympio (2009)
96 páginas 

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais