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Crítica | Roda do Destino

Ou três contos de desejo, amor e linguagem.

por Gabriel Zupiroli
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Ryusuke Hamaguchi tem chamado bastante atenção em 2021 por ter emplacado dois longas-metragens de considerável sucesso. Drive My Car não apenas ganhou três prêmios no Festival de Cannes, como também tem sido incluído em diversas listas de melhores filmes. Roda do Destino, por sua vez, obteve uma recepção um pouco mais modesta, apesar de sair do Festival de Berlim com o Urso de Prata, segundo maior prêmio da competição. Laurel este mais do que justo: trata-se de um filme muito sólido, que cadencia em suas três distintas narrativas uma unidade coesa e com espírito, que transmite potência não apenas através de seu texto, mas sobretudo das imagens.

Os três pequenos filmes que compõem o longa-metragem não se conectam narrativamente, entretanto todos abordam questões similares. No primeiro, acompanhamos a formação de um delicado triângulo amoroso que mistura passado e presente. No segundo, a encenação se pauta sobre um jogo de sedução em prol da vingança. Já no terceiro, um velho encontro entre duas amigas culmina em uma poderosa dupla de representações performáticas que soam quase como fugas da realidade. Todos os três filmes conectados pela surpresa e pelo acaso.

Uma grande dificuldade em se realizar um filme como esse é, justamente, como fazer com que os componentes singulares do todo se entrelacem em um sentido comum. É fácil cair no erro de explorar narrativas que aparentemente soam conectadas, mas que são construídas de maneiras completamente distintas, sem procurar uma unidade entre as partes. Não digo aqui que todos os pequenos filmes devem ser filmados da mesma maneira, de forma alguma. A questão que cerca essa espécie de obra é justamente fazer com que suas partes existam num diálogo de sentidos, ainda que sua forma seja completamente oposta. E Roda do Destino providencia muito bem tal dinâmica não apenas ao aproximar suas temáticas, mas ao fazer com que todos os pequenos filmes criem uma influência mútua. Assim, ainda que possam ser encarados como obras isoladas, o sentido que se capta a partir de sua experiência de consumo é ressignificado sob a ótica de um todo dividido em capítulos.

E Hamaguchi parece querer transparecer essas conexões inclusive nos interiores narrativos. O primeiro filme se pauta sobretudo em cima de coincidências (ou talvez do destino, para fazer uma brincadeira com o título brasileiro), onde o elemento de surpresa se dá a partir da proximidade entre os indivíduos que atravessa a temporalidade para criar o caos no presente. Os personagens estão conectados quase como em uma peça grega, dispostos como elementos que constroem um discurso acerca de suas próprias atitudes.

Já no segundo filme, a relação entre uma atitude passada que reverbera no presente se transforma em um jogo erótico encenado com um propósito, mas que justamente pela absurdidade de certas condições – como a figura do personagem escritor -, acaba por não se concretizar e criar um efeito inesperado. A teatralidade em prol da sedução, performada brilhantemente pelos atores, sai pela culatra e culmina em um inesperado olhar para suas próprias interioridades. O plano da representação possibilita, nesse caso, a quebra da separação que existe entre a aluna, o professor e seus próprios conhecimentos de si.

Por último, Hamaguchi explora essa ideia entre as conexões dispersas no tempo e o acaso relativo a elas no limite ao trazer a ideia da coincidência em si, violá-la e estabelecer, a partir disso, uma dimensão tão forte da representação que lembra muito bem Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami. Aqui, as duas “amigas”, ao se depararem com o desentendimento em relação a se conhecerem, decidem transformar tal momento em um escape para seus anseios existenciais através do fingimento, da farsa, da performance. Ambas exploram e se entregam profundamente a essa dinâmica, visto que, à exceção disso, não há saída menos dolorosa.

Mas o que faz com que essas camadas existam em sintonia quase perfeita no filme é, sobretudo, a forma como Hamaguchi decide capturá-las. Por se tratar de uma obra construída sumariamente através de diálogos, o diretor opta por dominar a temporalidade do plano ao esticá-lo além do esperado para encenar. Assim, enquanto os personagens desdobram a si mesmos em jogos de representação para adentrarem suas interioridades, o plano acompanha toda essa dinâmica em um êxtase contido, rígido, que captura o movimento e deixa este existir por si só na tela. Longos diálogos se dão sem pausas ou entrecortados por pequenos cortes precisos, que trabalham um jogo cênico de causa e efeito. Apenas em momentos muito específicos o cineasta libera a imagem: quando o peso interno dos personagens já é insuportável e eles anseiam por libertá-lo através do gesto emocional, a câmera acompanha esse desenlace e se entrega ao movimento rápido, certeiro, enclausurado. De certa forma, Hamaguchi evoca aqui a Rohmer e Hong Sang-soo em suas maneiras de capturar a representação mais realista em função da emoção genuína e articulada.

Roda do Destino comporta três narrativas que procuram, de forma observadora, capturar certa humanidade em seus personagens através de um próprio conhecimento inesperado deles por si mesmos. Assim, é pelo acaso e pela surpresa que as condições para tanto são impostas. É também pela câmera extremamente inteligente de seu diretor que tudo isso é esculpido. E, é claro, por meio da amarra sólida entre seus filmes já muito tenazes que o conjunto adquire uma unidade orgânica, dialogável. À exceção de breves momentos em que o filme parece fugir de seu rigor, especialmente no primeiro segmento, trata-se de uma obra muito precisa e até mesmo leve, no sentido de que tem consciência de sua própria forma de encenar. Um filme espetacularmente delicado, agridoce e irônico.

Roda do Destino (Wheel of Fortune and Fantasy | Gūzen to Sōzō) – Japão, 2021
Direção: Ryusuke Hamaguchi
Roteiro: Ryusuke Hamaguchi
Elenco: Fusako Urabe, Hyunri, Kawai Aoba, Kiyohiko Shibukawa, Kotone Furukawa, Nakajima Ayumu, Shouma Kai
Duração: 121min.

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