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Crítica | Ripley (2024)

O talentoso Zaillian.

por Ritter Fan
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Não se pode descartar uma obra que tenha o carimbo de Steven Zaillian. Afinal, ele tem, em seu currículo, dentre outros, os roteiros de A Lista de Schindler, O Gângster, Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011) e O Irlandês, além da co-criação (e a direção e o roteiro de alguns episódios) da minissérie The Night Of, até 2024 seu único trabalho para a televisão. Se essa obra também contar com o diretor de fotografia Robert Elswit, ganhador do Oscar de Melhor Fotografia por seu trabalho em Sangue Negro e que também concorreu à mesma estatueta por Boa Noite e Boa Sorte, ela já começa a tornar-se essencial. E, finalmente, se ela for a adaptação de O Talentoso Ripley, o romance mais famoso de Patricia Highsmith, que já foi alvo de duas célebres adaptações cinematográficas, a franco italiana O Sol por Testemunha e a americana de título homônimo, tem-se algo imperdível.

Não quero, porém, de forma alguma dizer que essa conjunção astral audiovisual não pudesse dar muito errada, mas, ao revés, Ripley, minissérie que adapta o citado livro que era para ter sido distribuída pela Showtime, mas que acabou com o Netflix, é um grande acerto de Zaillian que jogou em todas as posições, do desenvolvimento e produção até a direção e roteiro de todos os oito episódios, inegavelmente um trabalho hercúleo e meticuloso. Bebendo de fontes variadas que passam por Alfred Hitchcock, Nosferatu, M, o Vampiro de Dusseldorf, arte sacra, film noir em geral e outras, a visão de Zaillian, com a magnífica fotografia em preto e branco de alto contraste de Elswit, parece querer negar a abordagem ensolarada dos longas de René Clément e Anthony Minghella, que antecederam sua minissérie, e, com a escalação principalmente de Andrew Scott como Tom Ripley, parece querer redobrar os esforços de distanciamento, já que o ator não tem o tipo de beleza que nos acostumamos a esperar do personagem. Aliás, interessantemente, a idade de Scott – quase 50 anos – também funciona para afastar a minissérie do próprio romance de Highsmith que conta com personagens substancialmente mais novos, ainda que Scott nos faça esquecer de qualquer consideração a esse respeito pela maneira sinistra com que ele compõe o personagem.

É claro que é a direção de fotografia de Elswit que imediatamente chama atenção e prende o espectador, pois ela entrega, de imediato, a natureza da obra, um thriller noir cadenciado que acompanha o personagem titular, que vive de pequenos golpes em um quarto imundo em Nova York, por uma aventura na Itália depois que o bilionário pai de Richard “Dickie” Greenleaf (Johnny Flynn) lhe pede que ele convença seu filho, que está gastando dinheiro infinito na Europa, a retornar ao lar. Em nenhum momento Zaillian, com seus roteiros e sua direção, e Elswit, com sua fotografia, querem enganar o espectador, levando-nos por um segundo sequer a pensar que Tom tem alguma virtude ou algo senso de moralidade. Muito ao contrário até, o que vemos todo o tempo é um mundo frio, triste, distante que por vezes ganha uma luz suntuosa, mas decadente, normalmente vinda das filmagens em locação por basicamente toda a Itália. Temos as vidas dos ricos de um lado – Dickie namora Marge Sherwood (Dakota Fanning), outra que vive de gastar dinheiro – e, do outro, a vida daquele que quer ter essa vida privilegiada sem, porém, sequer tentar um caminho legítimo. Tom quer ser Dickie e Dickie tem dinheiro demais para sequer perceber que há algo verdadeiramente errado ali.

Zaillian também não economiza nos malabarismos de suas câmeras, filmando com o “manual do diretor” a tiracolo, ou seja, usando todos os truques possíveis, sejam extasiantes plongées e contra-plongées, misteriosas tomadas com máscaras e bloqueios em primeiro plano, emprego constante de chiaroscuro, e uma infinidade de outras técnicas que normalmente parecem chamar mais atenção para si mesmas, desviando o espectador da narrativa, mas que, aqui, funcionam para criar atmosfera, para nos fazer entrar na mente de Ripley em constante maquinação e para criar suspense e, também, pelo menos em minha visão, uma leve – bem leve – comicidade de variedade satírica. É, talvez, a convergência perfeita de forma e substância que consegue criar tensão sem esforço ou, talvez melhor dizendo, pedindo apenas paciência do espectador, já que a minissérie é, basicamente, um antídoto para o frenesi a que fomos (mal) acostumados na televisão. Tudo acontece muito vagarosamente, como uma sucessão de sofisticados pratos em um restaurante “michelado” que precisam ser degustados com calma e interesse e, também, com ouvidos abertos, pois a arquitetura sonora da minissérie é comparável, em qualidade e esmero, à sua fotografia.

Na medida em que os atos de Tom Ripley o coloca cada vez mais contra a parede, algo que acontece quando a série “alcança” a misteriosa sequência inicial em que o vemos puxando o corpo de alguém escada abaixo, os roteiros vão pedindo mais da suspensão da descrença por parte do espectador, algo que pode ser explicado em grande parte pelo amadorismo e decisões de momento de Ripley e por uma boa dose de sorte e improviso. Além disso, a minissérie cria um interessante paralelo com a vida do pintor Caravaggio, que Dickie admira e que, por isso, Tom passa a admirar (ou a fingir que admira), o que não só sublinha a carga homoerótica da obra e que vem diretamente do romance de Highsmith, como estabelece a inspiração, digamos, fantasiosa, para aceitarmos o que vemos na tela, ou seja, algo na linha do “se aconteceu antes, pode acontecer novamente”. Somente no episódio final é que um interrogatório pelo inspetor de polícia italiano Pietro Ravini (Maurizio Lombardi, muito divertido no papel), em Veneza, foi, para mim, o equivalente àquela gota d’água que faz o copo derramar, retirando-me momentaneamente da imersão inebriante a que a série havia me sujeitado até aquele momento, com os acontecimentos seguintes funcionando com um dénouement aí sim talvez longo demais, que se preocupa em demasia em colocar todos os pingos nos is.

Mesmo com tropeços na linha de chegada, Steven Zaillian fez de Tom Ripley seu próprio personagem, dando-lhe uma nova, ousada e magnífica roupagem que ao mesmo tempo o aproxima e o afasta mais da obra original e que faz de Andrew Scott, que me perdoem Alain Delon e Matt Damon, o intérprete definitivo do personagem. Aliás, diria que Ripley, a minissérie, é o tratamento ideal para o romance de Patricia Highsmith, pois é uma obra que sabe capturar a atmosfera e tensão do original dando tempo para que vejamos o protagonista aprimorar seus duvidosos talentos.

Ripley (Idem – EUA, 04 de abril de 2024)
Desenvolvimento: Steven Zaillian (baseado em romance de Patricia Highsmith)
Direção: Steven Zaillian
Roteiro: Steven Zaillian
Elenco: Andrew Scott, Dakota Fanning, Johnny Flynn, Eliot Sumner, Margherita Buy, Maurizio Lombardi, Kenneth Lonergan, Ann Cusack, Bokeem Woodbine, Vittorio Viviani, Louis Hofmann, Fisher Stevens, John Malkovich
Duração: 444 min. (oito episódios)

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