Eu sou fascinado pela forma que comediantes falam em especiais de stand-up. A qualidade da escrita e a estrutura das piadas até o punch-line são essenciais para um bom trabalho cômico, mas a essência desta arte está bastante na forma que os artistas capturam a audiência, criam uma atmosfera e entregam o humor – tudo isso faz parte do chamado delivery, especialmente interessante quando pensamos que o show é basicamente uma pessoa falando com a audiência. Nesse meio, eu tenho três comediantes favoritos: Dave Chappelle, Louis C.K. e Ricky Gervais. Chappelle gosta de criar um tom de diálogo com a plateia, normalmente tocando em temas sociais relevantes como racismo e feminismo, mas sempre com um estilo descompromissado e sarcástico. O C.K. é mais um contador de histórias, normalmente voltado para o humor observacional de situações cotidianas da sociedade (trânsito, nossas relações com tecnologia e elementos familiares). Gervais é meio que uma mistura dos dois, mas tem uma abordagem mais, digamos, polêmica, prezando pela comédia de constrangimento e as piadas de insulto.
Primeiramente, quis dar este pequeno contexto para tentar demonstrar que stand-up é uma forma de arte mais complexa do que o senso comum pensa, de que é só um cara engraçado contando piadas, uma forma de análise simplista demais. E em segundo lugar, para explicar que o show de Gervais é extremamente voltado para timing. Aliás, todos os stand-ups são pensados num tempo de desenvolvimento e conclusão da piada, mas isso é especialmente importante para Gervais, pois seu humor circula efeitos cômicos de choque e incômodo, principalmente quando o sujeito de suas piadas é a audiência, como acontece no Globo de Ouro. Logo, ele precisa “cronometrar” e estruturar bastante seu show para fazer com que a audiência entenda a ironia das coisas irreverentes que estão saindo da sua boca. Os palermas que acham que Gervais está desrespeitando alguém sempre vão existir, mas também sempre achei que o comediante teve sucesso em demonstrar que tudo é sarcasmo e deboche sem nenhum tipo de ofensa.
Mas o artista pecou um pouco nesse quesito em SuperNatureza. Não que ele seja ofensivo ou algo do tipo, mas Gervais passa tempo demais explicando que suas falas são irônicas, fazendo piadas sobre momentos que serão cortados do especial e até dando um pouco de aula sobre os processos da Comédia. Desde que a cultura de cancelamento e a militância da internet surgiu, comediantes têm tido essa abordagem de esclarecimento em stand-ups, algo que não gosto, pois torna o humor explicativo demais e com quebras de progressão e timing – senti o mesmo problema em Encerramento, de Dave Chappelle. É um exercício de reflexão bacana e até necessário, mas ataca a fluidez do show com didatismos e muita justificativa desnecessária, roubando momentos que Gervais poderia simplesmente nos fazer rir.
Tirando esses probleminhas, porém, o material do britânico continua divertido. Como é habitual em seus especiais, há um tema em evidência através do título, aqui sendo o da natureza. Gervais tem um certo fascínio por animais, ecologia e a humanidade, explorando um humor por oras mais leve em piadas sobre gatos e sobrepeso (todas muito boas), e em outros momentos com tópicos mais polêmicos, como característico do seu trabalho. Tem atos aqui completamente hilários, como a parte sobre AIDS e pedófilos, suas cutucadas aos cancelamentos e exageros da militância e, claro, seu deboche de religiões e culturas – a piada muçulmana quase me derrubou do sofá.
Como sempre, ele encontra muito valor irônico na comédia de insultos e no efeito de choque do tipo “esse cara disse isso mesmo?” que tem acompanhado sua carreira. Alguns temas polêmicos são até meio batidos e confortáveis (como as piadas de minorias), mas Gervais alcança gargalhadas e murmúrios em elementos que as pessoas têm medo de zombar, principalmente em tempos intolerantes com comédia. Tirando os momentos explicativos, mais incessantes no início do especial, os arcos das piadas são bem naturais, com piadas se agarrando e ótimas punch-lines (talvez com exceção daquela que ele mesmo admite ser ruim). Também achei interessante a pessoalidade que o britânico injeta no especial, se colocando como sujeito das piadas de autodepreciação e de autoindulgência também, como as bits sobre sua riqueza e privilégios.
SuperNatureza não é um material excelente como antigos especiais de Gervais, mas há bastante carisma, irreverência e ironia do britânico para nos fazer rir das coisas mais ultrajantes e absurdas. O artista também parece estar se divertindo bastante com o show, o que também deixa tudo mais agradável de assistir. Como normalmente acontece em seu trabalho, a melhor punch-line é ver as pessoas inseguras sobre si mesmas, suas crenças e comunidades, irem à loucura com as piadas do comediante britânico. É a natureza humana. Felizmente, Gervais não tem medo de zombá-la.
Ricky Gervais: SuperNatureza | EUA, 24 de maio de 2022
Direção: John L. Spencer
Roteiro: Ricky Gervais
Com: Ricky Gervais
Duração: 72 min.