Existem filmes sobre pessoas. Existem filmes sobre lugares. E existem filmes sobre como as pessoas dão vida a lugares. Kleber Mendonça Filho trabalha justamente nessa zona cinzenta entre lugares e pessoas. Seu mais novo longa-metragem, Retratos Fantasmas, é uma carta de amor à sua terra natal, Recife, ao cinema e aos locais da cidade que ajudaram a construir sua trajetória enquanto artista e pessoa. Ao longo do filme o diretor apresenta alguns locais chave da cidade que marcaram sua vida: o apartamento de sua mãe, o centro da cidade de Recife e os cinemas de rua da capital de Pernambuco. Através de imagens de arquivo e materiais gravados atualmente, entramos em uma viagem ao passado que em momento algum deixa de lado seu impacto no presente.
É notável a capacidade que Kleber possui em lidar com espaço e dar vida, dinâmica, ao espaço físico. Isso se dá principalmente por conta das pessoas que vivem nos lugares. O Som ao Redor fala sobre um bairro; Aquarius, sobre um edifício; Bacurau, sobre uma cidadela. Retratos Fantasmas, no entanto, parte desde uma análise macro (o apartamento de sua mãe), até a figura maior (a capital Recife em si).
O filme de Kleber Mendonça tem direta ligação com impressões suas a respeito de seu cotidiano passado. Desde o famigerado apartamento de sua mãe e até o bairro no qual viveu sua infância até o centro da cidade, o diretor se encaixa em uma lógica citada pela artista Lygia Clark: “é preciso estar sempre captando”. A arte precisa da vida real para ser criada. No primeiro terço de Retratos Fantasmas, Kleber Mendonça conta como pequenos acontecimentos ao redor de seu bairro desembocaram diretamente na construção de dois de seus longas: O Som ao Redor e Aquarius. Primeiramente, somos surpreendidos: os dois filmes tiveram como principal locação o apartamento que pertencia à mãe do diretor – agora ocupado por ele. Ali, observando detalhes minúsculos, como o latido de um cachorro e a presença de cupins na vizinhança, Kleber começa a construir suas obras. São ficções, mas com um pé grudado nas experiências da vida do diretor. É, talvez, um pouco além da ficção: é a fabulação deleuziana, a imaginação, o ato de ficcionalizar algo cotidiano, pertencente ao mundo de fora do filme.
O uso de imagens do arquivo pessoal do diretor é mesclado com recordações atuais. Aqui, temos imagens com diversos tipos de textura: desde películas de má qualidade até planos com requinte imagético dos longas anteriores do diretor – como O Som ao Redor e Aquarius. Existem trechos nos quais Kleber apresenta gravações de visitas suas aos cinemas de rua de Recife, onde estabeleceu uma relação de carinho com o projecionista; uma relação genuína à Cinema Paradiso. Por mais que tais trechos falem do passado, sobre como era a realidade das salas de cinema antigamente, eles ainda são capazes de estabelecer um impacto no presente.
O esvaziamento das salas de cinema, as gravações mostrando o lugar repleto de pompa vazio, sem nenhuma alma viva, é, de certo modo, um recorte do presente. As salas de cinema analisadas pelo diretor foram substituídas por outros prédios. Walter Benjamin chamaria essa relação de imagem dialética: uma produção imagética que transita ao mesmo tempo entre passado e presente. Outro exemplo são os planos em um templo evangélico que antes foi uma sala de cinema. O diretor, inclusive, tece um comentário certeiro: essas imagens falam muito sobre o atual cenário social do Brasil, no qual a crença evangélica toma conta do país, espalhando igrejas e templos ao redor dos estados brasileiros.
O cinema é uma paixão quase irracional. E Kleber deixa claro o bastante que Retratos Fantasmas é também uma carta de amor à sétima arte. Já no princípio o diretor, ao falar da relação da casa de sua mãe com seus filmes, mostra-nos breves planos de seus filmes de ficção amadores: tiros, assassinatos, sustos. Tudo em sua moradia. Como se tudo ao seu redor estivesse servindo em prol do cinema – em dado trecho ele cita que dentro de sua casa existem duas divisões: a casa normal e a casa cinematográfica. Passando do amadorismo para o profissional, a casa e as peculiaridades de seu bairro se tornam protagonistas de seus longas citados anteriormente. Sempre captando, tudo que ocorre ao redor de Kleber é um potencial exercício fílmico: desde os cupins na casa ao lado até o serviço de segurança particular da rua do seu bairro. Tudo é cinema. Até mesmo o próprio cinema: a la mode Jairo Ferreira em O Vampiro da Cinemateca, Kleber Mendonça faz com que o projecionista de uma sala de cinema alternativa seja protagonista da primeira metade do filme. É também com muito pesar e ironia que o diretor fala sobre o fechamento daquelas salas que o moldaram enquanto artista e pessoa. A arquitetura atual de Recife já não permite mais modestos espaços: grandes prédios são a regra. O centro da cidade foi deixado de lado para os cupins. A capital que construiu o diretor Kleber Mendonça já não existe: vive apenas nas memórias vivas nas fotografias e nas gravações.
Como visto na última cena do filme, o que constrói a cidade e os lugares que Kleber escolhe mostrar, são pessoas invisíveis. Pessoas essas que podem dedicar sua vida a esses locais – tal qual o projecionista do cinema – ou pessoas que não fazem ideia do que sua presença representa para o lugar. A arquitetura, as selvas de pedra, são estáticas. Mas as vidas que nelas existem criam alma para o concreto. E aqui, em Retratos Fantasmas, tudo tem a ver com cinema. Sem filmes, o apartamento da mãe de Kleber talvez não tivesse uma aura tão especial; os filmes, os espectadores, o projecionista, são os verdadeiros protagonistas de toda e qualquer sala de cinema. O templo evangélico por si só não depende do cinema, mas as gravações do diretor dão volume humano ao templo suntuoso.
Retratos Fantasmas não olha para o passado só por olhar: a viagem é longa e sinuosa. Os fantasmas, aqueles que constroem a aura do lugar, podem ser invisíveis a olho nu, mas da câmera nada escapa. Os fantasmas das fotografias de Kleber que o digam. Do cinema, nada foge.
Retratos Fantasmas – Brasil, 2023
Direção: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Duração: 93 min.