O sentimento de pertencimento não implica, necessariamente, em algo positivo. Nem sempre assentar uma âncora em algum lugar significa alguma paz. Para alguns, continuar se movendo, se transformando, se adaptando, é aquilo que preenche seus vazios. Energia gerando energia, potência atrás de potência. E, cabe dizer, não se busca, aqui, fazer um juízo de valores entre essas opções; ambas são válidas de acordo com as tripas de cada um.
É essa falta de pertencimento que motiva Emir a desistir de sua vida no Líbano e rumar em direção a terras brasileiras, acompanhado de sua irmã, Emilie – a quem ele basicamente coage a fugir junto. Não existe uma certeza no destino dos protagonistas, ambos embarcam em direção ao incerto, a algo novo em distintos aspectos, desde a cultura até a língua. E sua viagem já inicia atribulada quando Emir, para economizar, decide entrar na embarcação de modo ilegal. Já dentro do barco, o destino dos irmãos se vê entregue nas mãos do alto mar e de suas formosas ondas. O formato de tela escolhido pelo diretor, mais achatado que o normal, em uma métrica de 4×3, cria uma interessante atmosfera claustrofóbica, dando à viagem ares nada confortáveis. Durante a estadia no navio, o trabalho sonoro é quase um personagem à parte. Os estalos do material do barco, o som das ondas, trovões e raios: tudo deixa o limite do naturalismo e entra no terreno do expressivo. A trilha sonora, nesse ponto, atua como elemento a deixar o trajeto mais desconfortável ainda. É, no entanto, no meio desse turbilhão de emoções que Emilie se apaixona por Omar, um mercador que lhe propõe uma ida à cidade de Manaus. Desde então, Emir é contra o relacionamento, sendo, em dados momentos, uma figura capaz de despertar certa antipatia perante o público.
Já no Brasil, uma nova trajetória em uma embarcação – agora indo em direção a Manaus. E é nesse ponto que Emilie deixa seu passado para trás e olha para frente, conseguindo enxergar um futuro um pouco menos incerto acompanhada de seu amante Omar. Definitivamente, ela abandona o navio que a trouxe às terras brasileiras e abraça aquilo que, futuramente, pode se transformar em uma âncora capaz de interromper a correria da busca em direção a lugar nenhum. A realidade de Emir é diferente, mais atribulada, mas o fato de seguir em constante movimento parece lhe conceder uma espécie de vividez. O viajar parece lhe fazer bem. A existência de infinitas possibilidades pouco certeiras é aquilo que faz seu coração bater mais forte. O romance de sua irmão, contudo, ferve seu sangue além do normal – parece vir dele um medo, mascarado por raiva, de perder aquela que é sua principal companheira nas empreitadas incertas da vida.
Passados alguns problemas entre Emir e Omar, os três protagonistas finalmente chegam em Manaus e por lá se instalam, mesmo a contragosto evidente de Emir. Ao mesmo tempo em que demonstra não querer seguir parado, ele não consegue abandonar sua irmã: ela é a única capaz de deixar o acorrentado. Emilie, nesse ponto, já fixou sua vida. A viagem, a caminhada, a correria, já não fazem parte de seu horizonte. Ela encontrou um destino, um lar, ao lado de Omar. Nada parece mudar sua opinião. A certeza de uma família é aquilo que, dentro de seu âmago, sempre quis como destino. Emir, por outro lado, não aceita, até aqui, que Emilie siga estacionada. Para ele, as coisas não funcionaram; não há, dentro dele, um sentimento de pertencimento – é deixado claro que, em Manaus, junto do casal, ele se sinta deslocado, como um apêndice dispensável. O último grande respiro de Emir se dá na data do casamento de sua irmã. Ali, quase que como em despedida, ele vence sua letargia, vai à cerimônia e, com um sincero sorriso, sai de cena. Depois, o vemos em um píer em frente ao rio. Logo em seguida, sua imagem some, ficando implícito um suicídio.
Em termos gerais, o melodrama familiar que Marcelo Gomes constrói ao longo dos noventa minutos de Retrato de um Certo Oriente é um elemento funcional, mas que parece subaproveitar a figura de Emir. Seguindo uma focalização centrada majoritariamente em Emilie, seu irmão parece, várias vezes, ser reduzido a um homem mal-humorado, ranzinza. Essa falta de Emir, principalmente na segunda metade da obra, acaba por enfraquecer a dinâmica entre os irmãos, deixando de lado possíveis articulações da relação entre a ternura e a própria raiva dos dois. Escolher dedicar um bom trecho do filme apenas ao romance de Emilie e Omar não parece uma decisão tão funcional do ponto de vista dramático. O casal aparenta ter funcionado de maneira mais orgânica quando o drama estava estabelecido dentro da lógica de romance proibido, fugidio.
A verdade é que Emir nunca saiu do primeiro navio. Talvez não exatamente isso. Seu corpo definitivamente deixou a embarcação, mas sua alma segue presa à viagem. São raros os momentos de ânimo ou de vida do personagem. Seus dias tomam contornos letárgicos e marasmo. Só as ondas do oceano e suas incessantes reviravoltas seriam capazes de lhe dar uma injeção de ânimo. Emir é como uma onda do mar. Energia que gera energia e assim por diante. Sua função é fugir, correr, viajar e seguir por assim. Nenhum lugar parece capaz de comportar sua personalidade fugidia, independente. Por mais que isso aparente uma certa liberdade, também pode ser visto como melancolia ou uma constante insatisfação consigo mesmo. Talvez Emir não se movimente por prazer, mas por uma necessidade que transcende a racionalidade.
Retrato de um Certo Oriente (Brasil, Itália, Líbano 2024)
Direção: Marcelo Gomes
Roteiro: Marcelo Gomes, Gustavo Campos, Maria Camargo
Elenco: Wafa’a Celine Halawi, Charbel Kamel, Zakaria Kaakour, Eros Galbiati, Rosa Peixoto
Duração: 92 min.