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Crítica | Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City

Resident Evil na essência de seus primeiros jogos: um survivor horror contido.

por Iann Jeliel
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Resident Evil: Bem-Vindo a Raccon City

  • SPOILERS dos dois primeiros jogos de Resident Evil, que podem ou não serem idênticos nesse filme. Recomendo assisti-lo antes de ler o texto.

Resident Evil: Bem-Vindo a Raccon City está ao lado de Tomb Raider: A Origem como as duas adaptações cinematográficas de games que “quase” chegaram no ponto de equilíbrio ao preservar a essência do material fonte sem deixar de conceber uma proposta particular para uma nova mídia. Curiosamente, as duas franquias já tiveram seus nomes manchados nas telonas: Tomb Raider com os dois filmes da Angelina Jolie; Resident Evil com os seis filmes de Milla Jovovich. Um dueto que foi o mais próximo de uma franquia de games que genuinamente fez “sucesso” nos cinemas, já que temos a conhecida maldição percorrendo esse “subgênero”, onde qualquer tentativa automaticamente se transformava em uma bomba colossal. As franquias citadas foram popularmente um ponto fora da curva, ao compartilharem de uma mesma fórmula facilmente digerível de películas de ação surgidas no início dos anos 2000 que denomino como “feitos para o Domingo Maior” – orçamento barato, trama minimamente envolvente nos clichês e mulher hipersexualizada como protagonista.

Estão longe, no entanto, de serem grandes filmes. Muito pelo contrário, especialmente considerando o aspecto adaptativo em que os roteiros cuspiam em cima da caracterização e proposta dos jogos. Não que uma adaptação cinematográfica de game não deva seguir as próprias pernas, não possa apresentar personagens diferentes, uma história reordenada e original ou mesmo outra caracterização, mas é preciso entender a base de tudo, senão vira uma usurpação de propriedade alheia para vender o próprio umbigo – exatamente o que as obras mencionadas faziam. Roar Uthaug (diretor de Tomb Raider: A Origem) e Johannes Roberts (diretor deste Bem-Vindo a Raccon City) entendem essa premissa, tanto quanto entendem ser impossível redimensionar todos os elementos dos jogos na “curta” duração de uma fita, somente porque os “fãs” dos originais queriam ver. É preciso encontrar um elemento da essência original que sirva como ideia sustentáculo da construção inteira da adaptação. Em Tomb Raider foi o realismo de sobrevivência vindo dos jogos da nova geração. Já em Resident Evil foi o survivor horror minimalista presente nos dois primeiros jogos igualmente simplistas, os quais têm suas histórias combinadas para serem narradas aqui como uma só.

Parece um tiro no pé, num primeiro olhar, pois já seria difícil resumir um jogo, quem dirá dois, em apenas um filme. Só que como falei, não é preciso trazer a mesma coisa do jogo na tela, logo, o roteiro espertamente corta vários elementos isolados desses jogos para formar uma única narrativa (mesmo que dividida em duas temporalidades) que não renuncia a ideia de focar exclusivamente no terror contido que, tanto a Mansão Spencer infestada de zumbis, quanto a Delegacia R.P.D cercada pelos mortos vivos, queria passar. Nesse sentido, a construção atmosférica (assim como nos jogos) é respaldada pela apresentação dos ambientes, na maneira como a cenografia vai nos penetrando e imergindo os personagens de forma gradual com a aparição da ameaça. Primeiro ela é sugerida (infectados, como se fossem pessoas com uma doença) para depois se tornar perigosa (comportamento canibal). Nesse meio tempo, em vez de resolver enigmas com os avatares, temos um real desenvolvimento do quinteto mais chamativo dos dois primeiros Resident Evil quando ainda eram, apenas, “meros” humanos. Há quem jogue a franquia a partir do quarto e que irá reclamar desse quinteto não ser os “super-heróis” a que estavam acostumados, além do aspecto físico pouco semelhante, menos “embranquecido”, mas o cineasta (também roteirista) entende da base desses personagens na franquia e respeita essa linha original, tanto no desenrolar de cada arco durante a história, como na personalidade encenada.

O Leon (Avan Jogia) certamente é o mais polêmico nesse sentido, mas ele é exatamente a representação de um recruta policial tendo que encarar seu primeiro dia de trabalho em um cenário apocalíptico. Há quem diga que o deixaram “burro demais” ou como alivio cômico (não julgo que o filme tenha doses de comédia, ele se leva plenamente a sério), mas a verdade é que o Leon nos jogos sempre foi ingênuo e bonzinho demais – não à toa  a Ada (Lily Gao) sempre passou a perna nele facilmente – e, no segundo jogo, (sem ser o remake, o original) era inexperiente tanto quanto é mostrado no filme. Essa mescla de ingenuidade e amadorismo o torna um personagem muito mais palpável de ser visto em telas, diferente do avatar no jogo que sempre foi muito inexpressivo e unidimensional – calma, Leon é um dos meus favoritos da saga, mas ele é um tipo de personagem que é legal de você “ser” num jogo, não de acompanhar numa história mostrada a menos que fosse um filme de brucutu.

Wesker (Tom Hopper) é outro a ser polemizado pelos “fãs” mais ácidos, mas que ganhou camadas a mais na sua jornada para ser “vilão”. A concepção totalmente maniqueísta da sua traição à  equipe Bravo, no primeiro jogo, dá lugar a motivações bem plausíveis nesse filme, principalmente na forma como seu ponto de virada é sobreposto a uma situação específica que o roteiro prepara no clímax. Já Chris (Robbie Amell) e Jill (Hannah John-Kamen) não escapam muito da sua representação de soldados genéricos um pouco acima do “comum” (como eram no primeiro jogo) e ficam um pouco para escanteio na divisão de tela. Até existe com o Chris uma tentativa de desenvolvimento conectado com Claire (Kaya Scodelario) e um passado amarrado dos irmãos com William Birkin (Neal McDonough) – escolhido como único “chefão” a ser enfrentado com coerência, afinal, nos dois primeiros jogos, foi o único dos vilões com algum desenvolvimento humano –, mas que fica muito na superfície e, inclusive, traz alguns problemas no aspecto emocional puxados do terceiro ato.

Claire, por outro lado, é perfeitamente transportada para o cinema como uma jornalista astuta e inteligente, estrategicamente colocada como protagonista para fornecer à progressão narrativa um acompanhamento atmosférico similar à sua intuição de investigar que havia algo de errado com a cidade fictícia (reforçando o: fictícia). Falando nela, Raccon City é reimaginada num contexto social degradante coerente com sua origem e que ainda traz mais conteúdo a ser discutido internamente durante o caos. Essa reimaginação é não só um pretexto ideal para que Resident Evil: Bem-Vindo a Raccon City se mantenha do início ao fim no terror (o fato de a história se passar totalmente numa madrugada também ajuda), como colocar a cidade como se fosse shopping do Romero em O Despertar dos Mortos, ou seja, um lugar de experimento e observação do comportamento humano quando está no limite.

Pena que isso é pouco explorado, no fim das contas, pois faltam personagens secundários terem mais presença. No máximo, temos Delegado Irons (Donal Logue – que seria um ótimo casting para Barry Burton, diga-se de passagem) fugindo da Delegacia na primeira oportunidade e o jornalista Ben Bertolucci (Josh Cruddas) que didatiza as circunstâncias dos outros no pouco que aparece. Quem sabe, com uma maior duração, outros personagens, canônicos ou não, poderiam ser explorados como contextualizadores dessa denúncia de classes. Fica um subtexto (assim como nos jogos originais) vago, especialmente considerando o final, que não fecha esse, nem qualquer outro raciocínio levantado. A conclusão não chega a ser ruim, mas é estritamente abrupta e sacrifica um clímax mais grandioso para não descambar a sua proposta de ser mais contida. Até tem uma brincadeira legal com uma circunstância dos jogos – aquela arma que derrota qualquer chefão em um tiro só, e outras como o sanduíche da Jill –, mas acaba sendo demasiadamente frio e mal calculado no que deixa em aberto.

É verdade que existe a intenção de fazer um cânone da história exclusiva para os cinemas, mas era preciso garantir uma adaptação fechadinha para depois pensar em expandi-la. Há escolhas feitas que não têm mais volta – a exemplo da história do terceiro jogo, que teria de sofrer uma completa repaginação caso quisesse ser contada – e que dificultam esse processo. Como fã antigo da franquia, torço para que exista essa continuidade – assim como torço para que continuem o Tomb Raider da Alicia Vikander –, mas vai ser complicado, considerando o gosto amargo deixado pelos últimos dez minutos do filme. No entanto, considerando o todo cuidadoso entregue em Resident Evil: Bem-Vindo a Raccon City – que preciso dizer em todas as palavras de desabafo: É INFINITAMENTE SUPERIOR A QUALQUER LIXO DO PAUL W.S. ANDERSON – é preciso ter muita má vontade para dizer que eles (ou birras de caracterização) estragam a experiência. Foi “quase” – chegando perto de Terror em Silent Hill que foi a melhor e única acima da média adaptação de games até hoje –, mas o caminho para mudar o rótulo negativo dos games no cinema, é esse.

Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City (Resident Evil: Welcome to Raccoon City | EUA, 2021)
Direção: Johannes Roberts
Roteiro: Johannes Roberts
Elenco: Kaya Scodelario, Hannah John-Kamen, Robbie Amell, Tom Hopper, Avan Jogia, Donal Logue, Neal McDonough, Lily Gao, Chad Rook, Marina Mazepa, Nathan Dales, Josh Cruddas, Pat Thornton, Holly de Barros, Janet Porter, Lily Gail Reid, Daxton Gujral, Dylan Taylor, Sammy Azero, Jenny Young, Nathaniel McParland
Duração: 107 minutos

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