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Crítica | Remédio Amargo

por Luiz Santiago
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Pelo bem ou pelo mal, o espectador encontrará elementos de A Casa (2020), outro thriller espanhol que deu o que falar no início da temporada pandêmica, aqui em Remédio Amargo. Dirigido por Carles Torras, o longa foca em um paramédico chamado Ángel (Mario Casas em uma ótima interpretação, cheia de expressões faciais fortes de ódio, dor e maldade), que após um acidente na ambulância, fica em cadeira de rodas. Do início do filme até esse evento definidor de todo o restante da história, o texto constrói de maneira muito cuidadosa o personagem de Casas, inclusive em detrimento do desenvolvimento de sua parceira Vane (Déborah François), desequilíbrio de tratamento que se mantém até o fim.

O espectador aprende a desconfiar de Ángel e muito cedo nota o caráter abusivo de seu relacionamento com Vane, o que é piorado pelo fato de ele não conseguir ter filhos e possuir uma paranoia e um ciúme doentios. Os ingredientes para um suspense cheio de elementos psicológicos estão por toda a parte e o roteiro procura ajustar o andamento da história a esse fator de desequilíbrio mental que se torna mais forte no protagonista, passando por uma maré de perdas (embora só o acidente não seja sua culpa) e recusando-se de fato a perder. Se antes o seu abuso, invasão de privacidade e manipulação eram chocantes e colocavam o espectador em alerta, o meio do filme traz uma situação que intensifica o medo e a raiva do público, gerando aquela grande expectativa para a fuga.

SPOILERS!

Não se trata, todavia, de uma enredo novo. Mas salta aos olhos a construção curiosa que a obra traz para a reutilização desses ingredientes sempre fortes do suspense, uma escolha que certamente causará estranheza em muitos espectadores. O longa está claramente posto entre 2019 e 2020, mas o desenho de produção escolheu uma criação de Universo que é pelo menos de uma década antes. Há um forte caráter impessoal nesse ambiente. Veja as roupas de Ángel, por exemplo, que parecem um amontoado de tendências dos anos 90 e 2000, padrão que vemos ainda mais fortemente na direção de arte para o apartamento, que fora o celular e o computador, não possui tecnologias encontradas em habitações atuais. O aparelho de som é antigo (com vinil e K7!) e a constituição do quarto ou mesmo o prédio nos faz lembrar algo bem mais antigo.

Esse aparente deslocamento no tempo incrementa a sensação de horror psicológico, porque tira de cena as muitas possibilidades de escape e também de pertencimento. O que Ángel faz com Vane é retirar dela as esperanças e forçá-la a se adequar a uma situação em que a vida com ele seja a única possível. O desenvolvimento disso no texto é ao mesmo tempo enraivecedor e dramaticamente instigante. O problema é que o mesmo texto não faz questão de ser coerente com um aspecto muito importante de sua proposta: a presença da polícia. A partir do momento em que temos a polícia em cena, fica muito difícil aceitar, por exemplo, que o ato final não cause nenhum tipo de investigação ou ligação de Ángel com o desaparecimento de Vane ou com o assassinato de Ricardo (Guillermo Pfening). Por mais que eu tenha gostado muito do desfecho de vingança torturante, com inversão de papéis, o incômodo causado pela incoerência frente à não-investigação policial foi bem maior.

Remédio Amargo consegue nos manter entretidos em boa parte de seu desenvolvimento, mas o espectador não deve ir com altas expectativas ou esperando que o filme esteja livre de problemas de coesão, especialmente no final, talvez o momento que mais irá dividir o público diante de uma notável discrepância narrativa. É um suspense sobre abuso no relacionamento e sobre como algumas pessoas simplesmente acabam caindo em armadilhas, apenas por uma manifestação simples de humanidade. Num mundo de muitos desumanos, isso se torna um perigo cada vez maior.

Remédio Amargo (El practicante) – Espanha, 2020
Direção: Carles Torras
Roteiro: David Desola, Hèctor Hernández Vicens, Carles Torras
Elenco: Mario Casas, Déborah François, Guillermo Pfening, Celso Bugallo, Raúl Jiménez, Maria Rodríguez Soto, Pol Monen, Gerard Oms, Pau Escobar, Jaume Felip, Vicenta N’Dongo
Duração: 94 min.

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