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Crítica | Rede de Ódio (2020)

por Iann Jeliel
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Rede de Ódio

Mais uma vez a Netflix demonstrou um exímio domínio no que diz respeito a marketing e posicionamento da sua grade de lançamentos. Assim como em O Poço, a empresa parece ter esperado o momento exato para soltar Rede de Ódio em seu catálogo, atiçando o público mainstream a consumir uma obra que não necessariamente teria apelo popular se não tivesse sido perfeitamente vendida na hora certa, no momento certo e da forma correta. Tematicamente, é uma obra extremamente contemporânea, quase momentânea, tamanhas as similaridades dos demasiados contextos sociopolíticos expostos com a situação de pandemia, especialmente no jogo de manipulação de informação digital constante e na facilidade de disseminação de discursos automatizados a fim de gerar uma polarização estratégica para os interesses de determinadas conjunções capitalistas.

Contudo, a temática nem se comporta como o principal gatilho de interesse – esse gatilho está vendido na publicidade -, o centro está interligado diretamente ao estudo de um personagem distorcido por uma complexa construção social. Equivalente ao seu filme anterior, Corpus Christi, o cineasta polonês Jan Komasa trabalha fortemente com a ambiguidade de desejo impossibilitado por ações, em um paradoxo moral. Naquele filme, um jovem criminoso queria ser padre, neste, o ambicioso, inteligente e também jovem protagonista quer fazer a diferença no mundo de alguma forma, mas somente se chegar lá pelo caminho mais fácil, que a priori corresponde a escolhas amplamente questionáveis. O nível de provocação através desse contraste é o mesmo em ambos os filmes, mas o grande diferencial deste está no universo de possibilidades oferecidos ao acompanhar o estudo pela incerteza.

O diretor propõe todo um jogo motivacional com o público através da psicanálise do protagonista. Cada movimento ou ação dele na história cria uma teia de acontecimentos caóticos – que constroem a crescente de thriller no tom – de direcionamentos banais, à primeira vista até gratuitos, por não haver uma frontalidade com os objetivos primordiais do personagem momentaneamente, fazendo-o parecer um cego em tiroteio, ou no caso, um mero peão do sistema em que se envolveu. Ao mesmo tempo, a sua frieza e sagacidade ao realizar determinadas tarefas instiga a questionar os intuitos de suas ações, algo que em pequenos detalhes, pequenas gesticulações sutis e reativas a determinadas situações – muito bem calculadas pela performance de Maciej Musialowski -, junto a subtramas específicas, dão as pistas que desmascaram o personagem e seus planos executados por diferentes facetas.

O grande lance é prestar atenção em suas mentiras para perceber seu semblante quando diz uma verdade, e aí, quando as teias vão se juntando e acontecendo dentro do planejamento do protagonista, as peças se encaixam coerentemente na lógica da conquista de espaço exponencial. O roteiro é bastante habilidoso para deixar tudo plausível e não perder a linha realista que observa aquelas ações sempre de um modo crítico para gerar o desconfiômetro e naturalmente o chamariz temático. Por mais que para tudo ficar amarrado de forma tão “organizadinha”, fosse necessária uma baita sorte nos palpites de como cada envolvido iria reagir à primeira ação para levar à próxima, é comprável porque de certo modo, na estrutura do filme, somos ludibriados a intuir algo por ele, ou seja, caímos em seu jogo manipulativo, e se nós como observadores caímos, quem dirá as vítimas sem acesso aos detalhismos que o entregam.

Por sinal, o filme toma tanto cuidado com essa linha de coerência que propõe diversas vezes obstáculos que dificultam a execução do plano para reforçar essa ideia da falta de um. As soluções apresentadas para essas situações são devidamente intuitivas, e por conta do texto afiado, mais à frente, quando colocadas como suporte do escopo maior, a impressão de improviso permanece, especialmente considerando que nenhuma das habilidades do protagonista é exagerada – ele nem hacker é. Reflexo de uma excelente dosagem de dualidade na linguagem, mesmo em um direcionamento executado de modo constantemente objetivo, o que é uma grande ambiguidade por si só. O protagonista em algumas cenas mente sobre a fragilidade emocional de estar sozinho para conseguir o que quer, mas a emulação é tão verdadeira quanto seu intuito de usá-la como mentira, porque mesmo em pequenos objetivos cumpridos pela metade, o misto de melancolia e prazer não sai de sua cara.

Retomamos então ao aspecto temático e por que a abordagem crítica do filme não é simplesmente oportuna como a Netflix a vende. Por mais que o contexto polarizador, a difamação de ódio e fake-news, os malefícios tecnológicos, a problematização à orientação sexual, dentre outros aspectos façam parte do escopo pensativo do filme, talvez seu grande valor esteja na compreensão circular da mentalidade do “jovem” e como isso infere em um ciclo vicioso de reinterpretações éticas ao longo de diferentes novas influências movidas por orgulho. Ensinamentos anteriores precisam ser rebatidos – independentemente se a construção moral individual fosse a mesma – para gerar um novo status julgado como revolucionário, pelo menos, esse é o caminho fácil para se chegar nele dadas as ferramentas tecnológicas e sociais.

O que torna esse filme bem representativo para expor de onde surgiu a onda ultraconservadora que se estabeleceu no poder na Polônia e em vários outros países nos últimos anos. Talvez nem tenha sido realmente a angústia de ter o progresso à frente do poder não o satisfazendo, mas somente pela vontade de atingir de novo o mesmo status de relevância e controle do tal poder. O clássico “os fins justificam os meios”, para quem não tem nada a perder, tem na barbárie essa solução capaz de inverter qualquer cenário, e fica claro que neste basta apenas uma pessoa com disposição para mudar tudo.

Rede de Ódio (Sala Samobójców. Hejter) –Polônia, 2020
Direção: Jan Komasa
Roteiro: Mateusz Pacewicz
Elenco: Maciej Musialowski, Vanessa Aleksander, Danuta Stenka, Jacek Koman, Agata Kulesca, Maciej Stuhr
Duração: 135 min.

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