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Crítica | Red: Crescer é uma Fera

Crescendo na descoberta da ancestralidade.

por Davi Lima
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Red

Let’s call it what it is, it’s a masterpiece
Got a whole lotta love for them city streets
Tonight is the place to be
Got a big boombox and a new CD

Nobody Like U (4*Town)

Em sequência de três filmes, a Pixar foca na identidade material de corpos dos seus protagonistas. Desde Soul, passando por Luca e agora Red, a fisicalidade  da animação tem se voltado a explicar os encaixes da fantasia interna em um mundo mais verossímil. Em tempos em que a representatividade e a inclusão social clamam por uma associação mais direta do discurso emocionante da Pixar com uma diversidade de lugares, Red: Crescer É uma Fera inclui agora o espaço do tempo como principal conflito do nosso presente. 

Nem Soul e nem Luca conceituavam as mudanças físicas como reflexo de algo biológico alinhado ao amadurecimento. A transformação da garota de 13 anos em um panda vermelho como símbolo das mudanças sexuais que surgem na primeira menstruação singularizam bastante a experiência dos espectadores com esse filme em relação aos outros dois da Pixar. Quando a história da protagonista Mei Lee (Rosalie Chiang) depende tanto da memória e da ressignificação da ancestralidade para a sua família sino-americana, tudo se torna mais específico e localizado nas discussões do tempo.

Nas últimas animações do estúdio, as mensagens têm cada vez mais sido moldadas para o íntimo, durante uma fase da empresa onde o drama universal de mundos fantasiosos começaram a se tornar melodramas como tentativa de criatividade. Assim como é bem tratado em Por Dentro da Pixar, há um incentivo  para se iniciar uma produção na casa da lâmpada saltitante com experiência mais emocionante de um diretor ou diretora. Por isso, Domee Shi escolhe não apenas tratar da liberdade feminina, maternidade e os diversos ganchos com os quais uma mulher pode se identificar, como recortar o seu tempo para a narrativa.

Esse detalhismo pessoal da direção, algo bem investido por Dan Scanlon em Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica, distingue um lugar de identificação, um período de boy bands nos primeiros anos do século XXI, herdado dos anos 90, na chamada geração do milênio em que as tecnologias para a infância se resumia a Tamagotchi e, para os brasileiros, os computadores da Xuxa. A precisão do tempo e essa nostalgia dos anos 90 que tem circulado por Hollywood, existe, mas não por acaso. É perceptível a dimensão sino-americana de Domee Shi, sua realidade na escola como uma garota inteligente, nerd, rodeada de amigas freaks para a dimensão comum dos americanos. E é nessa personalidade, já bem traduzida no curta Bao, que o tema familiar dos chineses é tratado como o acúmulo dramático fantasioso para o passado de 2002. 

A graça da história de Mei Lee é assistir à animação com elementos de um anime 3D e incluir no mundo da Pixar a mitologia da cultura chinesa como metáfora de discussões americanas. O recorte temporal também é especial por isso, porque é exatamente no começo do século XXI que a dita globalização finalizou sua diversidade cultural, para além da  econômica. Então, se a Disney produziu Mulan em 1998 e a Marvel produziu Shang Chi e a Lenda dos Dez Anéis em 2021, a Pixar, com Red, volta para 2002 para vasculhar no mais íntimo as histórias das garotas nesse meio tempo, descobrindo seus corpos e suas liberdades em novos lugares. A casa de Mei Lee não é o templo chinês em que ela trabalha com a mãe Ming (Sandra Oh), é uma casinha por trás do templo onde o pai cozinha em câmera lenta por puro estilo visual, assim como as emoções da animação são à flor da pele, influenciando até no ritmo frenético de se assistir ao filme.

Essas características quanto ao assunto do tempo poderiam ser apenas maneiras de a Pixar usar seus recursos para se aproximar das crianças do nosso presente e também pela protagonista ser uma adolescente de 13 anos entendendo aquele momento de desenhar cenas românticas debaixo da cama. Porém, quando o filme usa a quebra da quarta parede para apresentar seu mundo e fazer algumas piadas temporais, a animação vai bem além do tempo comum para incluir a intimidade infantil de Domee Shi. O recurso visual semelhante ao anime, com empolgações visuais de luzes, olhos aumentados e cenas de luta com o fundo cheio de riscos de intensidade, tudo isso modela a nossa percepção do tempo que se espera na realidade e no que se pode acontecer na fantasia. Os dramas do filme circulam em volta disso, quando o mundo de Mei Lee é exposto pela mãe numa articulação visual tão impactante e vergonhosa para a adolescente, que se imagina que seja um pesadelo. Mas não é.

Se Dan Scanlon havia colocado as dinâmicas de RPG em Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica como fundação das motivações do seus dramas – a ideia de brincar com o pai e o irmão como divisor de águas -, a diretora de Red desenvolve as referências e estilo artístico da cultura asiática em seu filme como entretenimento particular de um choque geracional. As grandes confusões contemporâneas em busca por representatividade e inclusão social envolvem as diferenças de geração.

A transformação em panda vermelho e tentar ser a filha perfeita para a mãe são partes de um mesmo problema para Mei Lee. Ser um panda a afasta da mãe por representar a menina crescer, ser independente, como a protagonista se apresenta comicamente no começo do filme. Ao mesmo tempo, ela se aproxima dos dramas maternos que também passaram pelo panda vermelho na sua adolescência. As emoções em êxtase que liberam o panda é como um terceiro ato antes do quarto ato finalizador, que reúne as questões da ancestralidade chinesa às  modificações do tempo presente, sabendo tratar das questões de natureza biológica e de amadurecimento de uma melhor forma que no passado da mãe.

A metáfora da menstruação como panda vermelho é a ponta do iceberg da intimidade para os tempos atuais, porque nos discursos modernos a biologia é bem mais controlável, algo diferente para os conflitos geracionais. O tempo não se prende facilmente. As memórias e as escolhas amorosas são bem mais difíceis de lidar, sejam com pais ou com amigas. Domee Shi esculpe digitalmente junto com os animadores esse percurso narrativo, em que as modificações do corpo, hoje bem mais aceitas que antigamente, criam fantasias chinesas mais fofas e aceitas do que as ilustradas em tempos mais antigos. 

Apesar de Red: Crescer é uma Fera entender tanto a forma como o conteúdo do tempo para tratar desse crescimento, existe uma fuga da unidade fílmica que a diretora cria para sua fantasia existir de forma verossímil no mundo. Quanto mais íntimos esses filmes da Pixar se tornam, os corpos dos roteiros se apegam mais aos discursos sobre a fisicalidade dos conflitos do que ao universo que gira em torno do personagem. Isso, por vezes, cria fragilidades de integração entre os conflitos e os lugares a que pertencem, algo que em Soul foi bem arranjado por Pete Docter com a ajuda do roteirista Kemp Powers – mesmo que fosse necessário um curso semi coach para isso. Logo, o que se torna frágil nessa animação da Pixar é exatamente o silêncio da ancestralidade.

É fato que esse conceito é muito delicado dentro dos grupos sino-americanos, muitas vezes oprimidos pela cultura familiar chinesa que busca determinar destinos para os netos e filhos engajados na cultura americana. Mas quando ele se apresenta por meio do panda vermelho como uma motivação histórica para defender a família, se torna contraditório ser algo individualizante para Mei Lee. Existe a união feminina de personagens da família da protagonista para medir a coerência dessa uma herança ancestral ser atualizada, não descaracterizada. Ainda assim, em essência, o panda vermelho busca ser mais o símbolo da independência familiar do que a restauração dela, como foi apresentado. Não é para menos que isso seja extremamente difícil de conciliar em ideias, ainda mais quando se trata de adolescentes de 13 anos como centro da história.

Por mais reticente que essa crítica ao modo como é tratada a ancestralidade pareça, Red evolui a discussão dentro da Pixar quanto às representações das transformações físicas. A inclusão do tempo alcança cada vez mais a intimidade livre dos diretores e especifica os filmes para grupos sociais em busca do próprio momento social . A novidade mais direcionada aos conflitos geracionais é um alento nas histórias de mulheres com suas mães, e também um olhar atento a como dialogar com a família as mudanças sociais por compreensões dos indivíduos cada vez mais dispostos a clamarem por lugares próprios. A problemática vindo de grupos sino-americanos acaba por tornar o panda vermelho em mais uma metáfora significante da Pixar para o cinema.

Red: Crescer é uma Fera (Turning Red) – EUA, 2022
Direção: Domee Shi
Roteiro: Julia Cho, Domee Shi
Elenco: Rosalie Chiang, Sandra Oh, Ava Morse, Hyein Park, Maitreyi Ramakrishnan, Orion Lee, Tristan Allerick Chen, Lori Tan Chinn, Mia Tagano, Sherry Cola, Lillian Lim, James Hong, Jordan Fisher, Finneas O’Connell, Topher Ngo, Grayson Villanueva, Josh Levi, Sasha Roiz, Addison Chandler, Lily Sanfelippo
Duração: 100 minutos

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