Não tem erro. Os nomes de Ed Brubaker e Sean Phillips na capa de uma HQ significa, automaticamente, que o leitor no mínimo dos mínimos tem uma história boa em mãos, isso se ele não estiver diante de um maravilhoso exemplar da Nona Arte. Reckless, a primeira de uma série de graphic novels estrelada por Ethan Reckless, está mais para o segundo do que para o primeiro tipo, ou seja, é outro grande acerto dessa prolífica dupla criativa em mais uma narrativa de pegada realista que nos apresenta ao anti-herói em questão, um “resolvedor de problemas” ou “herói de aluguel” com uma cicatriz no rosto que trabalha em um cinema abandonado, em uma simpática piscadela para Luke Cage que, em seus primórdios, tinha um escritório em cima de um cinema em funcionamento (além de um dos nomes que o personagem revela que usou no passado referenciar-se a outro fixer, desta vez da televisão: Ray Donovan).
Mas, como sempre em suas criações, Brubaker cria um personagem repleto de camadas e ele usa a narração em primeira pessoa diretamente de Reckless, além do artifício de enquadramento, que faz a história começar de seu fim, com tudo o que segue sendo um longo flashback – que, por sua vez, contém flashbacks – para descortiná-lo lentamente, na medida em que ele passa a ajudar uma ex-namorada sua a recuperar 100 mil dólares de alguém chamado Wilder. Como em Darkman, Reckless, em razão de uma explosão de que ele não se lembra quando era um agente do FBI infiltrado em revolucionários setentistas, só tem um sentimento, a raiva e, mesmo que ela não lhe dê poderes, lhe dá foco e a “habilidade”, se é que posso chamar assim, de ser descuidado, imprudente ou até irresponsável como seu sobrenome indica, sem dúvida uma vantagem quando ele precisa encarar situações de vida ou morte. Por outro lado, isso impede que Reckless se conecte com outras pessoas e, com isso, seja essencialmente alguém fadado a viver sozinho com um tremendo vazio dentro de si.
A breve descrição acima, que já traz elementos que muito claramente complicam a premissa em tese simples, ainda é rasa, pois, na medida em que a graphic novel continua, outras camadas dessa infindável cebola que é Reckless são reveladas, ressignificando sua missão no processo. E é isso que torna a HQ tão fascinante e fácil de ler. Brubaker mantem a abordagem realista, mas costura uma narrativa que bebe profundamente dessas revelações surpresa, sem que elas pareçam forçadas ou fora de lugar. E, como o presente da história se passa em 1981, o roteirista enxerta a configuração geopolítica da época em sua obra, emprestando-lhe abrangência macro, mas sem jamais esquecer-se do fio narrativo “micro” e principal que lida diretamente com Reckless e seu passado complicado.
Sean Phillips materializa a criação de Brubaker com sua usual maestria. O uso de cores pasteis cortesia de seu filho Jacob é o primeiro indicativo da década e da localização da história, evocando o lado árido de uma Califórnia em franca transformação. Os traços são tão realistas quanto a premissa, com todo o descaso que Ethan Reckless sente por si mesmo e por basicamente todo mundo ao redor – à exceção, talvez, de sua assistente Anna, que recebe os recados do número de telefone divulgado para que ele seja contratado – sendo refletido na crueza dos rostos e na sujeira das ruas. É como ler uma HQ escrita na época tamanha é a forma como o artista se apodera da década, da cidade e derrama tudo em páginas que jamais tentam chamar atenção para si mesmas. Não há splash pages, sangramento de um quadro para o outro, nada fora da formalidade clássica dos quadrinhos, o que é tudo o que o leitor precisa saber para notar que o que realmente importa é a história e não seus embelezamentos.
Reckless é um grande começo para a proposta de dupla em publicar uma sequência de graphic novels completas e não formada por edições periódicas estrelando seu fixer cheio de traumas do passado. Um desafio, sem dúvida alguma, mas um que Brubaker e Phillips não parecem ter dificuldade alguma de ultrapassar – já são quatro volumes publicados na data da presente crítica, com o projeto iniciado em 2020 – e isso sem parar de produzir outras obras em simultaneidade. Não duvidaria nada que, em futuro próximo, vejamos Ethan Reckless adaptado para o audiovisual, pois tudo na HQ grita cinema ou televisão, sem que a obra pareça algo pensado para isso como acontece com outros autores por aí.
Reckless (EUA, 2020)
Roteiro: Ed Brubaker
Arte: Sean Phillips
Cores: Jacob Phillips
Editora: Image Comics
Data de publicação: 16 de dezembro de 2020
Páginas: 141